terça-feira, 25 de setembro de 2012

O filho da lenda


Há uns dois meses, tive a sorte e a honra de conhecer e conversar com o bluesman Mud Morganfield, filho do grande Muddy Waters, talvez o maior da história do Blues. A entrevista saiu na revista, mas como a maioria dos amigos não vivem em Caxias, achei que valeria postar aqui também. A introdução do texto fala sobre o show que Mud fez por aqui, na mesma noite da entrevista. 



A reunião de fãs de blues, na última quarta (25) no Mississippi Delta Blues Bar, para assistir ao filho de uma das maiores lendas do gênero, Muddy Waters (breve contexto histórico: sem ele, não haveria Rolling Stones), esquentou a noite gelada, típica de Caxias. Quando o cinquentão Mud Morganfield, sua brilhantina e seu terno vermelho subiram ao palco – que fervia depois dos argentinos da Nico Smoljan Band, que acompanham o bluesman na turnê – os comentários davam a noção do que mais impressionava ali: a semelhança de Mud, o primogênito, com o pai. "Até o jeito de xingar os músicos é igual", afirmou um mais exaltado. 

A semelhança vai do visual ao timbre da voz. E o carisma não fica atrás. Mud conversa com a plateia, convida garotas para subir no palco, conta histórias do pai, brinca com os músicos ("meu tecladista tem 22 anos. Nunca teve o coração partido. O que pode saber sobre o blues?", provocou). Em seu show, Mud mistura músicas próprias do seu álbum mais recente, Son of the Seventh Son, com clássicos eternizados na voz do pai, como Hoochie Coochie Man e I Can't Be Satisfied.

Horas antes da apresentação, O CAXIENSE foi até o Personal Hotel conversar com Mud Morganfield, que na quinta-feira (26) voaria para Buenos Aires, dando sequência a turnê. Descontraído, fala sem a pressa que se poderia imaginar de quem está a poucas horas de se deslocar para um show. E quando fala do "pops", como se refere carinhosamente ao pai, não dissimula a honra que é ser o herdeiro do blues de Chicago.


É a sua 3ª passagem pelo Brasil, mas a primeira em Caxias. O que está achando?
Só deu para conhecer um pouco, mas estou gostando. Estive no bar ontem, é um clube fantástico. Um pouco pequeno, mas muito bonito. E o Toyo (Bagoso, proprietário do bar) é um grande cara.

Você esteve recentemente em um festival em Ilha Comprida, no interior de São Paulo. Também temos um festival aqui...
Em novembro, certo? Talvez no ano que vem, cara. Neste ano já tenho data agendadas na Inglaterra, por isso não poderei vir. Mas será um prazer se puder tocar na edição de 2013.

E como tem sido tocar com os músicos argentinos?
Eles estão me acompanhando por toda a turnê na América do Sul, são músicos fantásticos. Mas temos um baixista brasileiro também (Arthur 'Catuto' Garcia, da banda The Headcutters), que é incrível. 

Você é filho de uma lenda do blues e é impossível não falar sobre isso. Seu pai foi o maior de todos? Como ele influencia sua música?
Bom, para mim ele certamente foi o melhor, sim. Particularmente, eu amo tudo o que ele gravou, até as músicas que não fizeram nenhum sucesso. É uma benção ser filho de Muddy Waters, mas também de minha mãe (Mildred McGhee), que me levava para os bares para ouvir blues. De certa forma, já nasci com o blues dentro de mim.

Quais artistas mais inspiram o seu trabalho?
Certamente meu pai em 1º lugar, mas também outros músicos daquela época, como Howlin’ Wolf, James Cotton e Chuck Berry. Como cresci acompanhando os artistas da Motown, também me inspiro muito neles e em suas canções de amor. Mas meu músico preferido, sem dúvidas, é Barry White.

E as garotas caxienses, o que achou?
São anjos...(longa pausa). Anjos que escaparam do paraíso. Realmente lindas....deve estar faltando alguns anjos no paraíso, certamente (risos).

Vai fazê-las dançar hoje à noite?
Seria ótimo se elas dançassem um pouco, sim. 

Sem decepcionar Mud, as garotas dançaram muito. Só não se mexeram mais porque faltou espaço no ambiente lotado de entusiastas do blues.



*foto by Paulo Pasa

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A casa dos 39 quartos


Enquanto o tempo para escrever novas crônicas que irão mudar a vida dos amigos leitores e redefiniros rumos da humanidade não aparece, sigo postando aqui algumas das matérias que tenho escrito para a revista O Caxiense. O texto abaixo é sobre uma pensão da cidade onde 40 pessoas improvisam suas vidas – e onde por um mês eu improvisei a minha, até encontrar apartamento. Confesso que foi uma das maiores frias em que já me meti. Mas quando voltei lá, rendeu uma boa história.  


Na casa da dona Natália (foto) só se namora aos sábados. Assaltar a geladeira, só até as 22:00, no máximo 22:30. E para tomar banho, recomenda-se não ter pressa em encontrar um chuveiro livre. Melhor voltar para o quarto e tentar mais tarde. Essa é toda a etiqueta necessária para a boa convivência entre os quase 40 moradores da casa.

Nos 39 quartos da Pensão Para Moças e Rapazes Santo Expedito, número 3.262 da Rua Tronca, convivem os tipos mais diversos imagináveis, desde o engravatado com sapatos bem engraxados – normalmente recém-chegado na cidade – até malandro de regata e chinelo de dedos que vive de bicos. Indivíduos que podem parecer bem diferentes do lado de fora, mas quando cruzam o portão levam vidas bem parecidas: usam os mesmos banheiros, estendem as roupas no mesmo varal e fazem o mesmo barulho quando caminham sobre o piso de madeira, atrapalhado sem querer o sono dos que ainda não se acostumaram.

Para morar na pensão, o inquilino precisa pagar um mês adiantado, mesmo que pretende se hospedar por menos tempo. O preço médio, R$ 300, parece justo, pois inclui internet, TV a cabo e roupas de cama (que são lavadas aos sábados), além dos móveis básicos de um quarto – cama e roupeiro. Alguns custam um pouco mais, pois são mais espaçosos, têm guarda-roupas de 6 portas e até criado-mudo. Outros um pouco menos, pois só têm uma cama e um pequeno guarda-roupas. A lotação está sempre perto do limite. Atualmente, apenas 2 quartos estão vagos.

Dividida em uma casa, um porão adaptado e um puxadinho, onde ficam a maioria dos quartos, a pensão conta com duas cozinhas bem equipadas: tem geladeira, micro-ondas, fogão, purificador de água. Aos que chegam, a proprietária faz questão de dizer que é tudo de uso comum, inclusive os talheres e as panelas. Mas os que cozinham são poucos e sempre a mesma turma, que já se sente em casa, fala mais alto, escolhe o canal da TV. O cardápio é quase sempre o mesmo: Arroz, feijão e massa. No pátio interno, há dois disputados tanques de lavar roupas. A roupa lavada é pendurada nos varais, igualmente requisitados e sempre cheios. A maioria dos quartos – cujas portas são precedidas de uma escada de 3 degraus e protegidas por uma tramela, mas sem cadeado, a não ser que o morador já tenha um – só tem a mobília da casa e as poucas coisas dos hóspedes que cabem, em geral, rádio e televisão. As diferenças estão nos detalhes que ajudam a identificar cada morador: Um violão, uma pilha de livros, um notebook, um frigobar, um aquecedor.

Ninguém mora na pensão por gostar. Afinal, não é hotel, nem é pousada. Lembra mais uma república de estudantes, porém sem tantos amigos, sem nenhuma festa. As portas rangem, há frestas nas paredes, a água não sai em abundância de todos os chuveiros, ouve-se qualquer barulho dos quartos vizinhos, inclusive os roncos, mais frequentes entre 23:00 e 2:00. Não há requinte nenhum. São as necessidades – de gastar o mímino, de ter companhia, de ter um teto – que fazem a casa estar sempre cheia. Outro motivo para tanta gente passar um bom tempo na pensão é a sina de planos que não dão certo. São moradores que se cansam, saem em busca de um apartamento ou uma casa alugada, mas depois voltam, porque o patrão demitiu, o namoro terminou ou o orçamento foi mal calculado. Para os bons filhos que à casa tornam, as portas da pensão estão sempre abertas.

Morador mais antigo da casa, o metalúrgico Jair Rodrigues, de 38 anos, vive na pensão por achar mais prático – não precisa comprar móveis, nem pagar água e luz – e seguro. Natural de Cruz Alta, ocupa o quarto 13 há quase 3 anos. E por já ter se habituado à rotina e à convivência com os outros moradores, não pensa em sair por enquanto. Mas financiar um apartamento pelo programa Minha Casa, Minha Vida é um sonho acalentado a cada prédio construção que observa na rua.


Há dois meses, o jovem Gerson Fink (foto), de 25 anos, é o responsável pela trilha sonora da pensão. Mas ele não é nenhum DJ. O som que espalha pelo ambiente de 6 a 8 horas por dia é o do seu violão, praticamente um companheiro de quarto, pois Gerson não tem televisão, rádio e nem computador. Vive só com o violão e as palhetas. Quando está ensaiando as 17 músicas que pretende incluir em seu primeiro CD, já intitulado Miragem, toca e canta alto, sem medir o volume. Os vizinhos não reclamam do seu porp-rock influenciado por Jota Quest e Bidê ou Balde. “A pensão é tri, mas sei que logo vou sair, pois gosto de viver o momento, ir para onde der vontade. Só eu comigo mesmo”, comenta Gerson, que é natural da pequena Barão, a 100 km de Caxias, e desde que saiu da casa dos pais, há 3 anos, já passou por Carlos Barbosa, Gramado, Porto Alegre e Florianópolis. Nunca teve endereço fixo e nunca deu prioridade a isso. Atualmente, trabalha em um hotel, organizando o café da manhã. Como está ganhando um bom salário e tendo as horas livres que precisa para focar em suas músicas, deve permanecer pos mais algum tempo no quarto 26.

Não é o violão de Gerson que tem incomodado José Costa Neto (foto abaixo), de 16 anos, um dos recém-chegados quando fomos à pensão. Para ele, o problema é o frio. José é alagoano e ainda não completou um mês na casa. Aproveitou o primeiro salário de auxiliar de produção que recebeu na metalúrgica Randon para comprar um aquecedor elétrico. Ele não compartilha da boa vontade de Gerson com o cotidiano compartilhado. Sente falta da privacidade de quando morava apenas com os pais, em Maceió. Na primeira noite, diz ter ficado com medo, pois era a primeira vez que ficava sozinho. E, embora já tenha se acostumado, acredita que em pouco tempo irá se mudar para a casa do tio, que foi quem o convidou para tentar a sorte como metalúrgico no Sul.


Aos 57 anos, Natália Francisca, a proprietária, é daquelas senhoras que já viveram de tudo. Casou aos 11 anos, aos 12 teve o primeiro filho. Com o primeiro marido, foram 8 filhos, mais um com o segundo. O terceiro e atual marido, o pedreiro Lúcio da Silva, de 37 anos, ela conheceu como inquilino na pensão. Há 8 anos vivem juntos, o que para ele significou apenas "trocar de quarto", como costuma brincar. Ainda que só tenha estudado até a 2ª série do ensino fundamental, dona Natália se orgulha de exibir diplomas de massoterapeuta, cabelereira, manicure e overloquista (costureira). Há pouco tempo, também entrou para o comércio. Abriu uma pequena loja de roupas na garagem, que ajuda a incrementar a renda. Segundo ela, que resiste em contratar funcionários para ajudar no serviço, a pensão dá muita despesa e pouco lucro. Os gastos com luz e água ultrapassam os mil reais mensais. E ainda há o aluguel e os impostos, que ela se orgulha em dizer que paga, ao contrário de outras casas do gênero, que seriam irregulares, segundo ela.

A pensão Santo Expedito é a segunda incursão de dona Natália neste ramo. Há quase 30 anos, abriu a primeira, que se chamava Catarina – em alusão ao estado onde nasceu, no município de Anita Garibaldi – com o dinheiro que recebeu de fundo de garantia da metalúrgica Eberle, onde trabalhava. Os negócios começaram bem. Logo na segunda semana, ocupou todos os quartos do primeiro andar da casa que alugara – a proprietária vivia no térreo – e precisou emprestar a própria cama para um casal de clientes. Desde então, poensou em desistir apenas uma vez, quando se sentiu cansada e vendeu o que tinha para tentar a vida em Blumenau, onde comprou uma lanchonete. Porém, o negócio não deu certo e ela vendeu tudo novamente – nunca recebeu o valor da venda – para voltar a Caxias apenas um ano depois, alugando a casa onde deu início à pensão atual, na Tronca. E quando achou que iria se recuperar do golpe sofrido em Santa Catarina, um incêndio destruiu boa parte do puxadinho e uma das cozinhas da pensão. Ninguém ficou ferido, mas moradores perderam tudo e ela, que não tinha seguro, precisou pagar toda a reconstrução. "Não passo necessidades, mas pelo que já trabalhei na minha vida, adquiri muito pouco", lamenta Natália, que só não está na pensão quando vai à igreja às segundas-feiras, ou quando vai a São Paulo em excursões de lojistas à procura de roupas baratas.


Apesar dos percalços, dona Natália não se imagina fazendo outra coisa. Gosta de conviver com os moradores, já fez muitos amigos e diz ter tido poucos problemas com inquilinos nestes anos todos. Impõe poucas regras. Uma delas, a mais difícil de fazer cumprir, é quanto às visitas íntimas. “Tá achando que minha casa é motel?”, ela constrange os que não cumprem. A motivação maior para manter o negócio, segundo ela, é ajudar a quem precisa. “Às vezes chega gente aqui com o dinheiro que só dá para pagar o mês, bem trocadinho. Nesse caso, eu ajudo pagando rancho, passagem de ônibus, empresto telefone e até dinheiro, mas só pra quem se presta a procurar emprego”, destaca.

Entre os que recebem a ajuda da dona da pensão também estão alguns idosos deixados pelos filhos, que às vezes visitam com freqüência, às vezes, não. Quem cuida mesmo é dona Natália, que leva até no hospital quando necessário. Só pede para a família assumir a responsabilidade quando considera que estão muito doentes e é preciso procurar médios ou enfermeiros que ajudem a cuidar diariamente. No dia a dia por trás do portão da pensão Santo Expedito, dona Natália ajuda os inquilinos como pode. Sem querer, eles ajudam dona Natália a continuar fazendo o que gosta. Para quem topa a vida em grupo, a troca parece justa.

*fotos 1 e 4 by Paulo Pasa