quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Vizinhas


Parece querer o destino que eu conviva com muito mais vizinhas do que vizinhos. Vizinhas que na maioria das vezes passam por dramas solitários, que de certa forma passei a acompanhar, como ouvinte ou observador. Já revi alguns conceitos de vida nesse contato com as vidas que minhas vizinhas levam, em São Francisco, em Bento, em São Leopoldo, em Caxias do Sul. Para não constranger nenhuma, os casos que conto abaixo estão quase todos no passado e não explicitam onde foi. Mas quase todas ainda vizinham comigo, ainda são protagonistas das histórias que em algum momento eu pude conhecer.

Tive uma vizinha de uns 60 anos, talvez mais, que era bem solitária. Compartilhava comigo no elevador notícias do filho que passou por uma cirurgia delicada. Quando não nos encontrávamos no prédio, era no shopping, onde nos fins de tarde ela ia tomar sorvete e voltava com as compras para a casa. Tinha bom coração, essa vizinha, que mais de uma vez me socorreu quando precisei de filtro de café e papel higiênico. Meus vizinhos sempre foram mais úteis para mim do que eu para eles. Outra vizinha, de seus 40 e poucos anos, que tem como companheira de apartamento uma gata que eu ajudava a cuidar quando ela viajava, fez sopa pra mim quando fiquei doente.

Tive outra vizinha que convive com o drama de cuidar de um filho autista. A dor de não conseguir escola especial, de não ver o filho brincar com os amigos ou ter uma namorada, de não poder ter aparelhos eletrônicos muito modernos em casa, porque ele destrói tudo logo no primeiro dia. Há pouca paz no cotidiano dessa mãe, que apesar disso é uma pessoa ótima, forte como poucas e até bem-humorada.

Com algumas vizinhas que tive, convivi muito pouco mesmo. Mas menos nem por isso esqueço delas. Teve uma que se jogou em direção a um chão de pedras para dar fim à vida, mas sobreviveu. Outra cuidava da mãe com câncer, e com boa dose de razão reclamava do barulho que chegava do andar debaixo. Outra, que vivia sozinha no andar de baixo, queria saber sobre mim mas tinha vergonha de perguntar e pediu a uma outra que descobrisse quem eu era, pedia notícias sobre meu estado civil. Foi estranho me imaginar como assunto de conversas entre vizinhas.

Claro que nem tudo é drama. Certa noite de verão em que eu estava na janela, estendendo roupas, pude ver no apartamento de baixo um pouco do corpo de uma vizinha que enchia o prédio com seus gemidos de prazer. Naquela noite, o amor estava sendo praticado bem próximo à janela. Não sei se por ouvirmos o nosso muito de perto, mas fato é que tem um som sempre belo o amor dos outros.

Quando morei em uma pensão, tive uma vizinha de quarto por duas noites, até ela se mudar para um apartamento, que iria dividir com a proprietária, pagando aluguel. Era de Pelotas, tinha 30 e poucos anos, trabalhava em um sebo e me contou sobre o plano de fazer intercâmbio na Inglaterra. Também tinha um filho, acho que de 5 anos, que morava em Pelotas com os avós, pais dela. Quando retornei à casa alguns meses depois, para fazer uma matéria, soube que ela estava de volta ao quarto que morava antes, dessa vez com o filho, com quem passou a dividir a cama. Acredito que os planos de viagem tenham sido postergados.

Nunca fiz mais por minhas queridas vizinhas do que ouvi-las. Talvez seja a única serventia de alguém que não é nada prático e não troca a própria resistência do chuveiro quando queima. Por isso ouço-as sempre com atenção (às vezes alguma curiosidade de jornalista atrás de pauta), aconselho como posso, concordo com quase tudo o que me dizem sobre a vida. Pois, em geral, minhas vizinhas dramáticas também têm em comum o fato de saber mais sobre a vida do que eu. 

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A vida que restou das cinzas


No início de outubro, fui pautado para fazer uma matéria sobre a reconstrução da Vila Sapo, em Caxias, que foi afetada por um incêndio 10 dias antes. 20 casas ficaram totalmente destruídas e três jovens irmãos morreram. É a história mais triste que já escrevi.


Dizer que é possível imaginar a dor que a pessoa está sentindo é uma das formas mais comuns de se tentar confortar alguém. Mas a dor de Maria Cardoso, 41 anos, é inimaginável. E qualquer forma de tentar consolá-la enquanto admira as fotos dos filhos Maikiel, de 17 anos, Mateus, 12 e Marieli, 3, mortos no incêndio que levou também a casa de Maria e outras 19 moradias na Vila Sapo, no bairro Serrano, na última madrugada de agosto, parece mera tentativa de parecer solidário. Para a mãe que engole o choro diante de cada jovem ou criança que vê passar na rua, resta pela frente uma vida desde já incompleta. E que dificilmente se tornará maior do que o vazio que sente. As fotos que Maria mantém guardadas no envelope de um estúdio fotográfico de Caxias do Sul são as únicas lembranças materiais que conseguiu reunir dos filhos, já que tudo foi consumido pelas chamas. Impressas em papel ofício recentemente, as imagens foram tiradas de um cartaz feito pelos colegas de escola dos meninos, para homenageá-los no velório. Além delas, uma montagem que reúne lado a lado os retratos dos três, com o nome de cada um e uma mensagem religiosa, foi presente de uma amiga. Desde sábado, está emoldurada em um porta-retratos que repousa no pequeno altar que Maria ergueu na sala da casa onde mora provisoriamente, no bairro Pioneiro.

O trágico incêndio na Vila Sapo começou por volta das 23:30 da sexta-feira, 31 de agosto, na casa em que Maria vivia com os filhos, e logo se espalhou pela vizinhança. Embora a causa não seja confirmada, é provável que tenha sido provocado por uma vela esquecida acesa pelos meninos, que tomavam conta da casa. Naquele mesmo dia, no fim da tarde, a energia elétrica foi cortada pela Rio Grande Energia (RGE), por conta de um curto-circuito. Sem luz, os jovens devem ter recorrido às velas, pois a menina nunca dormia no escuro. A mãe, que estava trabalhando, só chegou ao local cerca de 1 hora depois, quando os bombeiros já haviam controlado o fogo, mas ainda não confirmavam se havia vítimas ou não. Relembrando daquela noite, Maria fala sem gaguejar ou dar sinais de fraqueza diante de memórias tão tristes. Conta que estava trabalhando normalmente, quando seu chefe avisou que as casas de 2 colegas haviam incendiado e perguntou se ela os conhecia. Ao saber que se tratava de seus vizinhos, logo imaginou que a sua também estivesse envolvida, porque as moradias eram todas muito próximas. Foi levada até a Vila Sapo por um segurança da empresa, mas quando chegou já era tarde demais. O fogo havia consumido tudo. Ao sentir a falta dos filhos, que nunca saíam de casa à noite e não estavam entre os vizinhos, que assistiam impotentes ao trabalho dos bombeiros, Maria pressentiu o pior. Sem conseguir permancer no local, foi levada até a casa de uma tia para se acalmar. E quando voltou, por volta das 4:00, teve a confirmação do que já esperava intimamente. Seus 3 filhos, cujos corpos foram encontrados abraçados, estavam mortos.

Foi na casa onde vive há poucos dias, enquanto espera por um dos apartamentos prometidos pela prefeitura aos moradores que perderam suas casas, que Maria Cardoso aceitou receber a reportagem de O CAXIENSE na chuvosa tarde de terça-feira (18), após uma breve entrevista por telefone na noite anterior. Sem querer, a reportagem interrompeu uma das raras horas de sono que ela conseguiu ter desde o dia em que viu seus filhos pela última vez, após se despedir para o que esperava ser uma jornada normal de trabalho na empresa Agrale, onde trabalha, há dois anos, no turno da noite. Tímida e de poucas palavras, Maria conta que sempre foi de chorar pouco e não gosta de expressar as emoções que sente. Parece tratar do assunto com mais resignação do que desespero. Ao responder sobre como tem sido seus últimos dias, conta que o isolamento tem sido a melhor forma de tentar absorver a dor, e por isso pede, repetidas vezes, para que não seja publicado seu endereço. Está cansada de ouvir as pessoas e suas palavras de conforto, por mais sinceras que sejam. “Todo mundo insiste me fazer lembrar do que aconteceu. Até gente que eu nem lembrava vinha me perguntar como eu estava. Isso é muito ruim, é como ter uma ferida e ouvir todo mundo dizendo: 'olha, tem que cuidar isso aí'”, comenta. Ainda sem se sentir preparada para recomeçar a vida, Maria, que é separada e não cogita constituir nova família, ganhou férias do trabalho, e agora passa os dias tentando absorver a dor, tendo pouco contato com as pessoas. Mas sabe que em algum momento será necessário seguir em frente com a parte que restou da vida que tinha. "A morte dos meus filhos mudou tudo, pois minha vida era só em torno deles. Quando chegava em casa, de madrugada, tinha que amamentar e colocar a pequena para dormir. Não tem como preencher esse vazio que fica. Uma parte da minha vida se foi, agora preciso aprender a continuar sozinha com o que sobrou para viver", afirma. À Vila Sapo, Maria também não pensa em voltar. Nas poucas vezes em que visitou o local após o incêndio, diz ter sentido algo como "uma sensação escura e sinistra", que prefere evitar. No chão onde ficava sua casa, improvisou uma pequena capela de tijolos, contendo apenas uma rosa.

Na humilde Vila Sapo, a área atingida pelo incêndio ainda guarda as marcas deixadas pelo fogo nas vigas de madeira que sobraram da maioria das casas. Pelo chão, alguns poucos pertences que as famílias preferiram tentar não recuperar, como peças de roupa, cadernos e brinquedos. É provável que nada venha a ser construído tão cedo pela prefeitura, que aguarda um levantamento técnico sobre as condições da área. Moradores que aguardam pelas habitações prometidas, como a faxineira Zeli Toledo, de 43 anos, começam a se mudar das casas de amigos e parentes para casas alugadas em outros bairros da cidade. Além do teto e dos móveis, cada família lamenta a perda daquilo que representa maiores recordações afetivas. No caso de Zeli, por exemplo, o vestido do batizado da filha é perda bem maior do que o dinheiro que estava na carteira. E mesmo quem escapou de perder a casa, convive agora com a lembrança de cenas que jamais gostariam de ter visto, e com a perda de amigos e bons vizinhos, como todos parecem lembrar dos 3 filhos de Maria. "Ele (Maikiel, o mais velho) era como um irmão pra mim. A gente tava sempre brincando, 'se arriando' em tudo. Vai deixar muita saudade", lembra o estudante Jefferson de Góis, de 16 anos, que mora do outro lado da rua onde ocorreu o incêndio.

Enquanto amigos, vizinhos e familiares não encontram respostas para a tragédia, Maria Cardoso tem na crença em Deus uma resposta que a conforta. Antes de se despedir da reportagem, fez questão de compartilhar o quanto tem buscado, na religião, a força para atravessar o momento difícil. Conta que, por ter ensinado aos filhos o amor a Deus, acredita que eles estejam juntos no céu, olhando por ela. "Tenho certeza que ensinei o melhor pra eles. E eles sabiam que Deus estaria com eles até na hora da morte".
*Fotos: Paulo Pasa

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Mãe no telefone


Noite passada, por volta das 21h, conversava pelo chat do Facebook com uma amiga, quando ela interrompeu bruscamente seu próprio raciocínio: “Já venho, mãe no telefone”. Bem assim, com essas mesmas palavras que uso para interromper uma conversa toda vez que minha mãe liga (normalmente depois das 20h dos dias mais calmos da semana, porque ela acha que eu sou muito ocupado).

Só ontem, ao ser destinatário e não remetente da mensagem, percebi que "já venho, mãe no telefone" é das frases mais bonitas que podemos dizer. Pode valer mais que "eu te amo", só pra citar uma que sempre declaramos à toa por aí. E talvez seja a única que não permita ao amigo responder algo como "não demore", por mais urgente que possa ser a pauta do bate-papo.

Mãe no telefone é uma interrupção sincera. Nem a mãe que por acaso diz "já venho, filho chorando", está tão isenta de qualquer desconfiança. Ninguém mente sobre uma ligação da mãe, que é coisa séria. Inventamos outras desculpas, nunca essa. Não há o menor receio de ser mal interpretado diante de tal justificativa. Com saudade de mãe não se brinca. E nossas saudosas mães, quando ligam, é porque estão de coração apertado. Acredito que não haja sono tranqüilo para uma mãe sem antes ter notícias do filho. Mas nem por isso elas ligam todas as noites. Preferem dormir preocupadas a dar a entender que estão ficando chatas com suas preocupações.

Não bastasse todo o trabalho de criar, de educar, de entregar para os braços pouco acolhedores do mundo, caber ainda à mãe a tarefa de ligar para o filho distante é demais. Mas nós, filhos desgarrados do lar, somos assim, esquecemos de dar notícias, sempre distraídos com o cotidiano a as buscas que nos dispersam de quem está sempre disponível.

Menos mal que toda a distância, toda a saudade, toda a falta de notícias e a consequente preocupação mútua, encontra toda a redenção nesta simples frase, que pode ser dita ou digitada em dois segundos, de forma tão automática quanto escrevemos o próprio nome. "Já venho. Mãe no telefone".