quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A arte de trovar



São 16h da primeira quinta-feira de outubro e o calor do sol castiga quem transita pelo populoso centro de Caxias do Sul. Próximo à esquina da avenida Júlio de Castilhos com a rua Moreira César, um rapaz de não mais de 1,70m se move com passos calculados, tentando não sair da sombra de uma árvore, no canteiro central. Ele tem a pele bronzeada, a barba por fazer e o cabelo arrepiado a base de gel e spray. Veste calça jeans e uma camisa do Juventude. Entre os dedos da mão direita, segura um cigarro que mal tem tempo de levar à boca. Não mão esquerda, está com dois buquês de crisântemos rosa. Outros 5 buquês, de rosas vermelhas e amarelas, mantém presos sob o braço esquerdo. Com o olhar atento de quem está sempre na rua, não perde de vista o balde que está ao lado da porta de uma ótica, recheado com pelo menos mais 5 buquês de flores diversas. Nesta tarde, como em qualquer outra, a missão de Diego Moroni é repassar o maior número possível deles para as mãos dos românticos transeuntes ou motoristas da cidade.

O vendedor de flores que até pouco tempo atrás podia ser visto todas as tardes na esquina da rua Coronel Flores com a Sinimbu, mas que há alguns dias deixou de ter ponto fixo, é o tipo de pessoa que já deve ter ouvido mais de uma vez que deveria se candidatar a vereador, pela popularidade de que desfruta. Entre seus incontáveis amigos do Centro, estão senhores em carros tão enormes quanto luxuosos, que baixam os vidros para trocar com Diego algumas palavras sobre qualquer banalidade que caiba em 10 ou 15 segundos, e senhoras – mais freguesas do que os homens – preocupadas em ter algum enfeite para receber as visitas na sala de estar. Vendendo flores desde os 10 anos de idade, Diego já descobriu que regar as amizades, e principalmente a clientela, é fundamental para não perdê-las.

Diego nasceu em São Marcos, há 35 anos, mas mora em Caxias desde os 20, no bairro Reolon. Divide a casa com o pai, a mãe, 8 irmãos e um cunhado, mas planeja se mudar em breve para um apartamento no Centro. Quer morar com a namorada. Já foi entregador de jornal e chapista do McDonald’s, mas sempre trabalhando meio turno, pois nunca deixou de vender suas rosas, crisântemos, orquídeas e gerberas. Nos finais de semana, Diego faz bicos como vendedor de bebidas em shows e em estádios de futebol, o que explica se seu rosto parecer familiar para públicos bem distintos. Com o salário e a comissão que recebe por buquê vendido, sua renda mensal gira em torno de R$ 1.000, sem contar os bicos.


Bem articulado, Diego concluiu o Ensino Médio na Escola Estadual Cristóvão Mendonza. Preocupado em atender bem a clientela estrangeira, chegou a frequentar por dois anos um curso de inglês. “Quando o cliente diz ‘no, eu respondo ‘obrigado’.” Mas por que obrigado? "Porque é assim também na língua dele”, confunde-se. Mas o que vale é a intenção. Nas suas mãos, os buquês custam R$ 10 cada, mas, “dependendo da cara do freguês”, como não tem vergonha de admitir, pode oferecer 2 ramalhetes por R$ 15. A clientela feminina é mesmo maioria. “Algumas compram para oferecer para uma amiga, mas a maioria é para enfeitar a casa”, analisa.

Na tarde em que acompanhamos o seu trabalho, enquanto ele está em sua estratégica posição sob a árvore do canteiro, uma senhora se aproxima do balde com os buquês. Ele interrompe uma conversa com uma amiga que estava passando por ali ao acaso, deixa-a aguardando e atravessa a rua para atender a também já conhecida Neusa Nery, de 42 anos, freguesa há alguns anos. Nessa ocasião, Neusa compra dois ramalhetes de rosas para a mãe e um ramalhete de crisântemo para a cunhada, ambas falecidas. É véspera de finados, o que, segundo Diego, não chega a incrementar o movimento. Talvez os mortos prefiram arranjos comprados prontos nas floriculturas. Antes de ir embora, Neusa deixa um elogio. “Sempre que eu penso em comprar flor, minha referência aqui em Caxias é ele”, brinca, sob o olhar orgulhoso do vendedor.

Quando não há nenhum freguês em potencial passando por perto, ocasião em que Diego aproveita para acender mais um cigarro, aproveitamos para perguntar qual o segredo para ser um bom vendedor de flores. “É saber trovar”, ensina. O que é trovar? “É ver uma senhora passando e sugerir: ‘vai uma flor para enfeitar a casa?’. Ou se passa um casal, perguntar para o homem: ‘não quer dar uma rosa para a namorada?’”. Mas não há argumento que supere a simpatia, um dom que ele sabe dizer até quando desenvolveu. “Sou simpático assim desde os 8 anos. Acho que desde essa idade que eu aprendi a gostar de alegrar as pessoas, de fazer todo mundo rir”, conta, com um sorriso bem característico, que é quase disfarçado. Talvez como o de quem acabou de contar uma piada que talvez só ele tenha entendido e você ficou no vácuo. 

Diego é mesmo um gozador. Ou será que alguém que leve a vida muito a sério vestiria, por baixo da camisa do Juventude, uma do Caxias, só para agradar a alviverdes e grenás? Das 8:30 às 20:30, o florista Diego, que os colegas conhecem por Alemãozinho, ganha seus dias se aproveitando da melhor forma dos afetos humanos. Pois enquanto houver romantismo, haverá um florista sorrindo pela rua.

*foto Paulo Pasa

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Caminho livre



Há alguns meses, aproveitando a repercussão do filme Na estrada (adaptação do clássico On the road, do Jack kerouac), sugeri na reunião de pauta da revista uma matéria sobre mochileiros. Encontrei gente bem bacana, com histórias e modos de viajar bem diferentes, mas que têm em comum uma certe aversão ao turismo convencional e um amor pelo improviso. Abaixo, a reportagem.



Eles amam viajar, mas não reservam hotel e nem acumulam milhas aéreas. Não fazem check-in e dispensam qualquer serviço de bordo. Se precisar, dormem na rua. Na hora de pegar a estrada, os sapatos do dia a dia dão lugar a botas com a sola gasta, duras de barro. Para os adeptos do mochilão, a “indiada” – alguém já disse por aí – é boa porque é ruim. Seria melhor se fosse pior. Afinal, turismo convencional é para os fracos.

O mochilão é mais do que uma forma alternativa de viajar pelo mundo, privilegiando gastos menores. É um estilo de vida, filosofia em que a imersão em culturas diferentes se dá não pela visita ao museu da moda ou pelos souvenires comprados na loja do aeroporto, mas sim pelo café na casa de um desconhecido, pela carona ou pelo ônibus lotado. Nos últimos anos, a cultura mochileira virou pop. São dezenas de blogs, livros, filmes e programas de televisão, dedicados a contar histórias de viagens, que tornam esse estilo cada vez mais popular (e menos estranho para os pais superprotetores). Em Caxias do Sul, encontramos pessoas que já nasceram com a mochila pronta, e outras que em algum momento da vida trocaram o turismo das agências pela aventura improvisada, substituindo o táxi pelos próprios pés. Conversando com todos eles, em comum percebe-se a ânsia por se tornar mais livre, de precisar cada vez menos para viver. E o inevitável desejo que permeia qualquer saída além do portão: conhecer pessoas.

Aos 28 anos, a produtora cultural Mona Carvalho é uma dessas pessoas apaixonadas por improvisar a vida de estrada em estrada. Morou na Espanha, na Itália e na Colômbia, sempre procurando fugir do convencional em cada lugar. Já pediu esmola para voltar para casa após um show de Marylin Manson, já teve que deixar uma casa de família por sofrer assédio de velho tarado, já usou as próprias malas como cama e as roupas como cobertor.

Entre as viagens preferidas, o trajeto até a cidade de Bucaramanga, na Colômbia, onde ganhou uma bolsa de estudos para cursar Manutenção de Bens Culturais, em 2007. O trajeto, feito de ônibus e caronas “nada memoráveis”, segundo ela, durou duas semanas e meia, passando por Paraguai, Bolívia, Peru e Equador, até chegar à pátria de Gabriel García Márquez. No caminho, entre uma escapada e outra do roteiro previsto, enfrentou desde deslizamento de terra até travessia de rio pendurada em uma corda, além de longas caminhadas no meio do nada atrás de carona. Para quem chega da Europa, a realidade latino-americana pode ser traumática. A viagem que duraria um ano, durou 3 meses, e foi derrotada por uma crise de identidade que trouxe Mona de volta para Caxias, para concluir o curso de Educação Artística, na UCS. Ainda assim, valeu a pena. “Botar uma mochila nas costas e viajar sem planejar nada, pelo menos uma vez na vida, é obrigação. Todo mundo deveria fazer isso pelo menos uma vez na vida”. Mona não cansa de recomendar experiências como as que acumulou. Segundo ela, a transformação que a vida longe de casa e sem regras provoca, é o que mais compensa. “Quando tu conhece uma cultura diferente e está aberto a isso, tu recomeça do zero. Deixa pra trás muito preconceito, fica menos ‘enjoada'. E percebe que não precisa de nada do que tem em casa para viver. É muito bom”.



Atualmente, Mona (foto acima) vive na casa dos pais. Recentemente, pediu demissão do emprego, na Secretaria Municipal da Cultura, para se dedicar aos projetos culturais que toca de forma autônoma, aproveitando o que considera um cenário favorável da cidade nesta área. Mas já sente a pressão por parte dos amigos. “Eles dizem ‘pô, tu está louca, como foi deixar o cargo bacana que tu tinha...’, mas eu não preciso disso. Só um pouco de grana – até para viajar. Mas ter amigos, música, natureza, estar fazendo tudo isso...é o que me basta”.

A satisfação que Mona sente viajando de ônibus, trem ou de carona, o cinegrafista da UCS TV Dirceu Borba experimenta caminhando. Dirceu é praticante de trekking, a famosa “trilha”, e está sempre na estrada. Entre os pertences mais queridos que mantém no apartamento que divide com a esposa, está uma bota que transformou em troféu, com uma placa identificando a quilometragem percorrida pelo calçado: 1000 km.

Dirceu é natural de Concórdia, em Santa Catarina, e desembarcou no Rio Grande do Sul de mochila nas costas, sem endereço. Em Porto Alegre, onde trabalhava na TV Guaíba, dormia na rodoviária, sem que os patrões soubessem. Em Caxias, afirma ter passado muitas noites no Parque dos Macaquinhos. Na estrada desde os 19 anos, quando saiu do Exército, a viagem que mais o marcou ocorreu em 2004, quando fez a pé a trilha dos incas rumo a Machu Picchu, no Peru. Mas nem são as belas paisagens da cidade perdida que fazem o catarinense querer voltar em breve: as melhores lembranças são justamente do pior trecho da viagem, as 22 horas passadas no tenebroso “trem da morte”, que liga Quijarro a Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, deixaram muito mais saudades. Construído na década de 50, o trem ganhou esse nome devido a um surto de malária que vitimou muitos operários que trabalhavam na construção. Meio século depois, o que assusta os passageiros são os solavancos e até algumas descarriladas no caminho, além da superlotação e as invasões de nativos a cada parada, que obrigou Dirceu a dormir com as mochilas amarradas junto ao corpo, para evitar furtos. Mas são experiências como essa que proporcionam as melhores lembranças e as melhores histórias para contar. Também são uma escola, que ensina a tolerar as diferenças e exercitar o autoconhecimento. Viajando sozinho, tu passa a dar outro valor para as coisas que no cotidiano passam batidas. A comida, por exemplo. A gente está sempre reclamando de fome mesmo sabendo que meio-dia vai almoçar, que à noite vai jantar. Longe de casa, em uma aventura, tu come coisas que achou que nunca teria coragem de comer”, observa o aventureiro.



Aos 47 anos, Dirceu (foto acima) não pensa em sossegar. Está sempre atrás de uma nova trilha, especialmente no Rio Grande do Sul. “Não sou uma pessoa muito urbana. Me sinto enlatado na cidade”, metaforiza. Ao contrário do que se poderia esperar, Dirceu não é avesso à tecnologia (tanto que trabalha com ela). Apenas prefere o equilíbrio. "Falta na sociedade saber estar livre de tanta parafernália, aproveitar a saúde, se movimentar. Um dia as coisas vão precisar cair do céu", observa.

A vida a pé, carregando o mínimo possível em uma mochila, parecia improvável para Elias e Neiva Mussatto. Casados há 40 anos, o bancário e a assistente social passavam por uma fase de conflitos internos, confrontados com a hipótese da aposentadoria e o que viria depois. Para entender melhor o momento que atravessavam, buscaram respostas em um dos mais famosos destinos dos viajantes: o místico caminho de Santiago de Compostela. Durante 30 dias, percorreram a pé os mais de 800 km do caminho francês até a cidade espanhola, uma das 9 rotas para se chegar à catedral de Santiago.

Despidos de qualquer luxo, Elias e Neiva (foto abaixo), que já haviam rodado o mundo como turistas, caminhavam de 25 a 30 quilômetros por dia, dormiam em albergues que chegavam a ter 100 camas em um mesmo espaço e comiam somente o necessário, que se tornava cada vez menos durante o caminho. As tralhas medicinais levadas para eventuais bolhas nos pés e outras enfermidades, foram deixadas pelo caminho logo nos primeiros dias. Estavam bem preparados (como treino, passaram por um ano de academia e pequenas caminhadas pelo interior do estado). Ao fim de cada dia, calculavam o quanto haviam gasto e se surpreendiam com a economia deste modo de viajar. Os amigos que fizeram pelo caminho aguardam ansiosamente pela próxima viagem dos dois, que deve ser pelo caminho português até Santiago.



"A sensação de chegar a pé em uma cidade pela primeira vez é incrível. Você se sente feliz e totalmente livre, tendo apenas a mochila nas costas", comenta Neiva, cuja veia aventureira surpreendeu os 4 filhos. “Esses meus filhos são muito machistas. Quando chegamos, diziam: 'o pai a gente sabia que ia conseguir, mas tu nos surpreendeu!'. E até hoje eles acham que o Elias é que carregava minha mochila”, brinca a senhora, que demorou a conseguir usar sapato de salto alto novamente após acostumar com o tênis.

Os melhores momentos da aventura estão registrados em um vídeo bem editado por Elias, com direito à trilha sonora de Raul Seixas e Roberto Carlos. Ele exibe a obra com orgulho, na sala da casa que divide com Neiva. Lembranças da viagem preferida do casal também estão na parede da sala, onde um mapa em alto relevo representa a rota que marcou um novo período de suas vidas. Depois de Santiago de Compostela, o casal embarcou em uma nova peregrinação, fazendo o caminho de São Francisco, na Itália. Mas esse tinha “só” 350 km. Elias, de 57 anos, e Neiva, de 55, se aposentaram no ano passado. Em alguma estrada espanhola, concluíram que o ciclo de trabalho já havia sido cumprido. Era hora de dar início a uma nova fase, talvez de trabalho voluntário. Ainda aguardam pela inspiração que lhes aponte qual o próximo caminho na vida. Mas só mesmo para o ano que vem. Por enquanto, os novos mochileiros de Caxias estão de férias, deixando acumular na caixa de entrada de e-mail os convites para novos passeios. Mas ainda há muita estrada a percorrer antes de pendurar as botas. 

fotos: acervo pessoal

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Vizinhas


Parece querer o destino que eu conviva com muito mais vizinhas do que vizinhos. Vizinhas que na maioria das vezes passam por dramas solitários, que de certa forma passei a acompanhar, como ouvinte ou observador. Já revi alguns conceitos de vida nesse contato com as vidas que minhas vizinhas levam, em São Francisco, em Bento, em São Leopoldo, em Caxias do Sul. Para não constranger nenhuma, os casos que conto abaixo estão quase todos no passado e não explicitam onde foi. Mas quase todas ainda vizinham comigo, ainda são protagonistas das histórias que em algum momento eu pude conhecer.

Tive uma vizinha de uns 60 anos, talvez mais, que era bem solitária. Compartilhava comigo no elevador notícias do filho que passou por uma cirurgia delicada. Quando não nos encontrávamos no prédio, era no shopping, onde nos fins de tarde ela ia tomar sorvete e voltava com as compras para a casa. Tinha bom coração, essa vizinha, que mais de uma vez me socorreu quando precisei de filtro de café e papel higiênico. Meus vizinhos sempre foram mais úteis para mim do que eu para eles. Outra vizinha, de seus 40 e poucos anos, que tem como companheira de apartamento uma gata que eu ajudava a cuidar quando ela viajava, fez sopa pra mim quando fiquei doente.

Tive outra vizinha que convive com o drama de cuidar de um filho autista. A dor de não conseguir escola especial, de não ver o filho brincar com os amigos ou ter uma namorada, de não poder ter aparelhos eletrônicos muito modernos em casa, porque ele destrói tudo logo no primeiro dia. Há pouca paz no cotidiano dessa mãe, que apesar disso é uma pessoa ótima, forte como poucas e até bem-humorada.

Com algumas vizinhas que tive, convivi muito pouco mesmo. Mas menos nem por isso esqueço delas. Teve uma que se jogou em direção a um chão de pedras para dar fim à vida, mas sobreviveu. Outra cuidava da mãe com câncer, e com boa dose de razão reclamava do barulho que chegava do andar debaixo. Outra, que vivia sozinha no andar de baixo, queria saber sobre mim mas tinha vergonha de perguntar e pediu a uma outra que descobrisse quem eu era, pedia notícias sobre meu estado civil. Foi estranho me imaginar como assunto de conversas entre vizinhas.

Claro que nem tudo é drama. Certa noite de verão em que eu estava na janela, estendendo roupas, pude ver no apartamento de baixo um pouco do corpo de uma vizinha que enchia o prédio com seus gemidos de prazer. Naquela noite, o amor estava sendo praticado bem próximo à janela. Não sei se por ouvirmos o nosso muito de perto, mas fato é que tem um som sempre belo o amor dos outros.

Quando morei em uma pensão, tive uma vizinha de quarto por duas noites, até ela se mudar para um apartamento, que iria dividir com a proprietária, pagando aluguel. Era de Pelotas, tinha 30 e poucos anos, trabalhava em um sebo e me contou sobre o plano de fazer intercâmbio na Inglaterra. Também tinha um filho, acho que de 5 anos, que morava em Pelotas com os avós, pais dela. Quando retornei à casa alguns meses depois, para fazer uma matéria, soube que ela estava de volta ao quarto que morava antes, dessa vez com o filho, com quem passou a dividir a cama. Acredito que os planos de viagem tenham sido postergados.

Nunca fiz mais por minhas queridas vizinhas do que ouvi-las. Talvez seja a única serventia de alguém que não é nada prático e não troca a própria resistência do chuveiro quando queima. Por isso ouço-as sempre com atenção (às vezes alguma curiosidade de jornalista atrás de pauta), aconselho como posso, concordo com quase tudo o que me dizem sobre a vida. Pois, em geral, minhas vizinhas dramáticas também têm em comum o fato de saber mais sobre a vida do que eu. 

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A vida que restou das cinzas


No início de outubro, fui pautado para fazer uma matéria sobre a reconstrução da Vila Sapo, em Caxias, que foi afetada por um incêndio 10 dias antes. 20 casas ficaram totalmente destruídas e três jovens irmãos morreram. É a história mais triste que já escrevi.


Dizer que é possível imaginar a dor que a pessoa está sentindo é uma das formas mais comuns de se tentar confortar alguém. Mas a dor de Maria Cardoso, 41 anos, é inimaginável. E qualquer forma de tentar consolá-la enquanto admira as fotos dos filhos Maikiel, de 17 anos, Mateus, 12 e Marieli, 3, mortos no incêndio que levou também a casa de Maria e outras 19 moradias na Vila Sapo, no bairro Serrano, na última madrugada de agosto, parece mera tentativa de parecer solidário. Para a mãe que engole o choro diante de cada jovem ou criança que vê passar na rua, resta pela frente uma vida desde já incompleta. E que dificilmente se tornará maior do que o vazio que sente. As fotos que Maria mantém guardadas no envelope de um estúdio fotográfico de Caxias do Sul são as únicas lembranças materiais que conseguiu reunir dos filhos, já que tudo foi consumido pelas chamas. Impressas em papel ofício recentemente, as imagens foram tiradas de um cartaz feito pelos colegas de escola dos meninos, para homenageá-los no velório. Além delas, uma montagem que reúne lado a lado os retratos dos três, com o nome de cada um e uma mensagem religiosa, foi presente de uma amiga. Desde sábado, está emoldurada em um porta-retratos que repousa no pequeno altar que Maria ergueu na sala da casa onde mora provisoriamente, no bairro Pioneiro.

O trágico incêndio na Vila Sapo começou por volta das 23:30 da sexta-feira, 31 de agosto, na casa em que Maria vivia com os filhos, e logo se espalhou pela vizinhança. Embora a causa não seja confirmada, é provável que tenha sido provocado por uma vela esquecida acesa pelos meninos, que tomavam conta da casa. Naquele mesmo dia, no fim da tarde, a energia elétrica foi cortada pela Rio Grande Energia (RGE), por conta de um curto-circuito. Sem luz, os jovens devem ter recorrido às velas, pois a menina nunca dormia no escuro. A mãe, que estava trabalhando, só chegou ao local cerca de 1 hora depois, quando os bombeiros já haviam controlado o fogo, mas ainda não confirmavam se havia vítimas ou não. Relembrando daquela noite, Maria fala sem gaguejar ou dar sinais de fraqueza diante de memórias tão tristes. Conta que estava trabalhando normalmente, quando seu chefe avisou que as casas de 2 colegas haviam incendiado e perguntou se ela os conhecia. Ao saber que se tratava de seus vizinhos, logo imaginou que a sua também estivesse envolvida, porque as moradias eram todas muito próximas. Foi levada até a Vila Sapo por um segurança da empresa, mas quando chegou já era tarde demais. O fogo havia consumido tudo. Ao sentir a falta dos filhos, que nunca saíam de casa à noite e não estavam entre os vizinhos, que assistiam impotentes ao trabalho dos bombeiros, Maria pressentiu o pior. Sem conseguir permancer no local, foi levada até a casa de uma tia para se acalmar. E quando voltou, por volta das 4:00, teve a confirmação do que já esperava intimamente. Seus 3 filhos, cujos corpos foram encontrados abraçados, estavam mortos.

Foi na casa onde vive há poucos dias, enquanto espera por um dos apartamentos prometidos pela prefeitura aos moradores que perderam suas casas, que Maria Cardoso aceitou receber a reportagem de O CAXIENSE na chuvosa tarde de terça-feira (18), após uma breve entrevista por telefone na noite anterior. Sem querer, a reportagem interrompeu uma das raras horas de sono que ela conseguiu ter desde o dia em que viu seus filhos pela última vez, após se despedir para o que esperava ser uma jornada normal de trabalho na empresa Agrale, onde trabalha, há dois anos, no turno da noite. Tímida e de poucas palavras, Maria conta que sempre foi de chorar pouco e não gosta de expressar as emoções que sente. Parece tratar do assunto com mais resignação do que desespero. Ao responder sobre como tem sido seus últimos dias, conta que o isolamento tem sido a melhor forma de tentar absorver a dor, e por isso pede, repetidas vezes, para que não seja publicado seu endereço. Está cansada de ouvir as pessoas e suas palavras de conforto, por mais sinceras que sejam. “Todo mundo insiste me fazer lembrar do que aconteceu. Até gente que eu nem lembrava vinha me perguntar como eu estava. Isso é muito ruim, é como ter uma ferida e ouvir todo mundo dizendo: 'olha, tem que cuidar isso aí'”, comenta. Ainda sem se sentir preparada para recomeçar a vida, Maria, que é separada e não cogita constituir nova família, ganhou férias do trabalho, e agora passa os dias tentando absorver a dor, tendo pouco contato com as pessoas. Mas sabe que em algum momento será necessário seguir em frente com a parte que restou da vida que tinha. "A morte dos meus filhos mudou tudo, pois minha vida era só em torno deles. Quando chegava em casa, de madrugada, tinha que amamentar e colocar a pequena para dormir. Não tem como preencher esse vazio que fica. Uma parte da minha vida se foi, agora preciso aprender a continuar sozinha com o que sobrou para viver", afirma. À Vila Sapo, Maria também não pensa em voltar. Nas poucas vezes em que visitou o local após o incêndio, diz ter sentido algo como "uma sensação escura e sinistra", que prefere evitar. No chão onde ficava sua casa, improvisou uma pequena capela de tijolos, contendo apenas uma rosa.

Na humilde Vila Sapo, a área atingida pelo incêndio ainda guarda as marcas deixadas pelo fogo nas vigas de madeira que sobraram da maioria das casas. Pelo chão, alguns poucos pertences que as famílias preferiram tentar não recuperar, como peças de roupa, cadernos e brinquedos. É provável que nada venha a ser construído tão cedo pela prefeitura, que aguarda um levantamento técnico sobre as condições da área. Moradores que aguardam pelas habitações prometidas, como a faxineira Zeli Toledo, de 43 anos, começam a se mudar das casas de amigos e parentes para casas alugadas em outros bairros da cidade. Além do teto e dos móveis, cada família lamenta a perda daquilo que representa maiores recordações afetivas. No caso de Zeli, por exemplo, o vestido do batizado da filha é perda bem maior do que o dinheiro que estava na carteira. E mesmo quem escapou de perder a casa, convive agora com a lembrança de cenas que jamais gostariam de ter visto, e com a perda de amigos e bons vizinhos, como todos parecem lembrar dos 3 filhos de Maria. "Ele (Maikiel, o mais velho) era como um irmão pra mim. A gente tava sempre brincando, 'se arriando' em tudo. Vai deixar muita saudade", lembra o estudante Jefferson de Góis, de 16 anos, que mora do outro lado da rua onde ocorreu o incêndio.

Enquanto amigos, vizinhos e familiares não encontram respostas para a tragédia, Maria Cardoso tem na crença em Deus uma resposta que a conforta. Antes de se despedir da reportagem, fez questão de compartilhar o quanto tem buscado, na religião, a força para atravessar o momento difícil. Conta que, por ter ensinado aos filhos o amor a Deus, acredita que eles estejam juntos no céu, olhando por ela. "Tenho certeza que ensinei o melhor pra eles. E eles sabiam que Deus estaria com eles até na hora da morte".
*Fotos: Paulo Pasa

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Mãe no telefone


Noite passada, por volta das 21h, conversava pelo chat do Facebook com uma amiga, quando ela interrompeu bruscamente seu próprio raciocínio: “Já venho, mãe no telefone”. Bem assim, com essas mesmas palavras que uso para interromper uma conversa toda vez que minha mãe liga (normalmente depois das 20h dos dias mais calmos da semana, porque ela acha que eu sou muito ocupado).

Só ontem, ao ser destinatário e não remetente da mensagem, percebi que "já venho, mãe no telefone" é das frases mais bonitas que podemos dizer. Pode valer mais que "eu te amo", só pra citar uma que sempre declaramos à toa por aí. E talvez seja a única que não permita ao amigo responder algo como "não demore", por mais urgente que possa ser a pauta do bate-papo.

Mãe no telefone é uma interrupção sincera. Nem a mãe que por acaso diz "já venho, filho chorando", está tão isenta de qualquer desconfiança. Ninguém mente sobre uma ligação da mãe, que é coisa séria. Inventamos outras desculpas, nunca essa. Não há o menor receio de ser mal interpretado diante de tal justificativa. Com saudade de mãe não se brinca. E nossas saudosas mães, quando ligam, é porque estão de coração apertado. Acredito que não haja sono tranqüilo para uma mãe sem antes ter notícias do filho. Mas nem por isso elas ligam todas as noites. Preferem dormir preocupadas a dar a entender que estão ficando chatas com suas preocupações.

Não bastasse todo o trabalho de criar, de educar, de entregar para os braços pouco acolhedores do mundo, caber ainda à mãe a tarefa de ligar para o filho distante é demais. Mas nós, filhos desgarrados do lar, somos assim, esquecemos de dar notícias, sempre distraídos com o cotidiano a as buscas que nos dispersam de quem está sempre disponível.

Menos mal que toda a distância, toda a saudade, toda a falta de notícias e a consequente preocupação mútua, encontra toda a redenção nesta simples frase, que pode ser dita ou digitada em dois segundos, de forma tão automática quanto escrevemos o próprio nome. "Já venho. Mãe no telefone".

terça-feira, 25 de setembro de 2012

O filho da lenda


Há uns dois meses, tive a sorte e a honra de conhecer e conversar com o bluesman Mud Morganfield, filho do grande Muddy Waters, talvez o maior da história do Blues. A entrevista saiu na revista, mas como a maioria dos amigos não vivem em Caxias, achei que valeria postar aqui também. A introdução do texto fala sobre o show que Mud fez por aqui, na mesma noite da entrevista. 



A reunião de fãs de blues, na última quarta (25) no Mississippi Delta Blues Bar, para assistir ao filho de uma das maiores lendas do gênero, Muddy Waters (breve contexto histórico: sem ele, não haveria Rolling Stones), esquentou a noite gelada, típica de Caxias. Quando o cinquentão Mud Morganfield, sua brilhantina e seu terno vermelho subiram ao palco – que fervia depois dos argentinos da Nico Smoljan Band, que acompanham o bluesman na turnê – os comentários davam a noção do que mais impressionava ali: a semelhança de Mud, o primogênito, com o pai. "Até o jeito de xingar os músicos é igual", afirmou um mais exaltado. 

A semelhança vai do visual ao timbre da voz. E o carisma não fica atrás. Mud conversa com a plateia, convida garotas para subir no palco, conta histórias do pai, brinca com os músicos ("meu tecladista tem 22 anos. Nunca teve o coração partido. O que pode saber sobre o blues?", provocou). Em seu show, Mud mistura músicas próprias do seu álbum mais recente, Son of the Seventh Son, com clássicos eternizados na voz do pai, como Hoochie Coochie Man e I Can't Be Satisfied.

Horas antes da apresentação, O CAXIENSE foi até o Personal Hotel conversar com Mud Morganfield, que na quinta-feira (26) voaria para Buenos Aires, dando sequência a turnê. Descontraído, fala sem a pressa que se poderia imaginar de quem está a poucas horas de se deslocar para um show. E quando fala do "pops", como se refere carinhosamente ao pai, não dissimula a honra que é ser o herdeiro do blues de Chicago.


É a sua 3ª passagem pelo Brasil, mas a primeira em Caxias. O que está achando?
Só deu para conhecer um pouco, mas estou gostando. Estive no bar ontem, é um clube fantástico. Um pouco pequeno, mas muito bonito. E o Toyo (Bagoso, proprietário do bar) é um grande cara.

Você esteve recentemente em um festival em Ilha Comprida, no interior de São Paulo. Também temos um festival aqui...
Em novembro, certo? Talvez no ano que vem, cara. Neste ano já tenho data agendadas na Inglaterra, por isso não poderei vir. Mas será um prazer se puder tocar na edição de 2013.

E como tem sido tocar com os músicos argentinos?
Eles estão me acompanhando por toda a turnê na América do Sul, são músicos fantásticos. Mas temos um baixista brasileiro também (Arthur 'Catuto' Garcia, da banda The Headcutters), que é incrível. 

Você é filho de uma lenda do blues e é impossível não falar sobre isso. Seu pai foi o maior de todos? Como ele influencia sua música?
Bom, para mim ele certamente foi o melhor, sim. Particularmente, eu amo tudo o que ele gravou, até as músicas que não fizeram nenhum sucesso. É uma benção ser filho de Muddy Waters, mas também de minha mãe (Mildred McGhee), que me levava para os bares para ouvir blues. De certa forma, já nasci com o blues dentro de mim.

Quais artistas mais inspiram o seu trabalho?
Certamente meu pai em 1º lugar, mas também outros músicos daquela época, como Howlin’ Wolf, James Cotton e Chuck Berry. Como cresci acompanhando os artistas da Motown, também me inspiro muito neles e em suas canções de amor. Mas meu músico preferido, sem dúvidas, é Barry White.

E as garotas caxienses, o que achou?
São anjos...(longa pausa). Anjos que escaparam do paraíso. Realmente lindas....deve estar faltando alguns anjos no paraíso, certamente (risos).

Vai fazê-las dançar hoje à noite?
Seria ótimo se elas dançassem um pouco, sim. 

Sem decepcionar Mud, as garotas dançaram muito. Só não se mexeram mais porque faltou espaço no ambiente lotado de entusiastas do blues.



*foto by Paulo Pasa

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A casa dos 39 quartos


Enquanto o tempo para escrever novas crônicas que irão mudar a vida dos amigos leitores e redefiniros rumos da humanidade não aparece, sigo postando aqui algumas das matérias que tenho escrito para a revista O Caxiense. O texto abaixo é sobre uma pensão da cidade onde 40 pessoas improvisam suas vidas – e onde por um mês eu improvisei a minha, até encontrar apartamento. Confesso que foi uma das maiores frias em que já me meti. Mas quando voltei lá, rendeu uma boa história.  


Na casa da dona Natália (foto) só se namora aos sábados. Assaltar a geladeira, só até as 22:00, no máximo 22:30. E para tomar banho, recomenda-se não ter pressa em encontrar um chuveiro livre. Melhor voltar para o quarto e tentar mais tarde. Essa é toda a etiqueta necessária para a boa convivência entre os quase 40 moradores da casa.

Nos 39 quartos da Pensão Para Moças e Rapazes Santo Expedito, número 3.262 da Rua Tronca, convivem os tipos mais diversos imagináveis, desde o engravatado com sapatos bem engraxados – normalmente recém-chegado na cidade – até malandro de regata e chinelo de dedos que vive de bicos. Indivíduos que podem parecer bem diferentes do lado de fora, mas quando cruzam o portão levam vidas bem parecidas: usam os mesmos banheiros, estendem as roupas no mesmo varal e fazem o mesmo barulho quando caminham sobre o piso de madeira, atrapalhado sem querer o sono dos que ainda não se acostumaram.

Para morar na pensão, o inquilino precisa pagar um mês adiantado, mesmo que pretende se hospedar por menos tempo. O preço médio, R$ 300, parece justo, pois inclui internet, TV a cabo e roupas de cama (que são lavadas aos sábados), além dos móveis básicos de um quarto – cama e roupeiro. Alguns custam um pouco mais, pois são mais espaçosos, têm guarda-roupas de 6 portas e até criado-mudo. Outros um pouco menos, pois só têm uma cama e um pequeno guarda-roupas. A lotação está sempre perto do limite. Atualmente, apenas 2 quartos estão vagos.

Dividida em uma casa, um porão adaptado e um puxadinho, onde ficam a maioria dos quartos, a pensão conta com duas cozinhas bem equipadas: tem geladeira, micro-ondas, fogão, purificador de água. Aos que chegam, a proprietária faz questão de dizer que é tudo de uso comum, inclusive os talheres e as panelas. Mas os que cozinham são poucos e sempre a mesma turma, que já se sente em casa, fala mais alto, escolhe o canal da TV. O cardápio é quase sempre o mesmo: Arroz, feijão e massa. No pátio interno, há dois disputados tanques de lavar roupas. A roupa lavada é pendurada nos varais, igualmente requisitados e sempre cheios. A maioria dos quartos – cujas portas são precedidas de uma escada de 3 degraus e protegidas por uma tramela, mas sem cadeado, a não ser que o morador já tenha um – só tem a mobília da casa e as poucas coisas dos hóspedes que cabem, em geral, rádio e televisão. As diferenças estão nos detalhes que ajudam a identificar cada morador: Um violão, uma pilha de livros, um notebook, um frigobar, um aquecedor.

Ninguém mora na pensão por gostar. Afinal, não é hotel, nem é pousada. Lembra mais uma república de estudantes, porém sem tantos amigos, sem nenhuma festa. As portas rangem, há frestas nas paredes, a água não sai em abundância de todos os chuveiros, ouve-se qualquer barulho dos quartos vizinhos, inclusive os roncos, mais frequentes entre 23:00 e 2:00. Não há requinte nenhum. São as necessidades – de gastar o mímino, de ter companhia, de ter um teto – que fazem a casa estar sempre cheia. Outro motivo para tanta gente passar um bom tempo na pensão é a sina de planos que não dão certo. São moradores que se cansam, saem em busca de um apartamento ou uma casa alugada, mas depois voltam, porque o patrão demitiu, o namoro terminou ou o orçamento foi mal calculado. Para os bons filhos que à casa tornam, as portas da pensão estão sempre abertas.

Morador mais antigo da casa, o metalúrgico Jair Rodrigues, de 38 anos, vive na pensão por achar mais prático – não precisa comprar móveis, nem pagar água e luz – e seguro. Natural de Cruz Alta, ocupa o quarto 13 há quase 3 anos. E por já ter se habituado à rotina e à convivência com os outros moradores, não pensa em sair por enquanto. Mas financiar um apartamento pelo programa Minha Casa, Minha Vida é um sonho acalentado a cada prédio construção que observa na rua.


Há dois meses, o jovem Gerson Fink (foto), de 25 anos, é o responsável pela trilha sonora da pensão. Mas ele não é nenhum DJ. O som que espalha pelo ambiente de 6 a 8 horas por dia é o do seu violão, praticamente um companheiro de quarto, pois Gerson não tem televisão, rádio e nem computador. Vive só com o violão e as palhetas. Quando está ensaiando as 17 músicas que pretende incluir em seu primeiro CD, já intitulado Miragem, toca e canta alto, sem medir o volume. Os vizinhos não reclamam do seu porp-rock influenciado por Jota Quest e Bidê ou Balde. “A pensão é tri, mas sei que logo vou sair, pois gosto de viver o momento, ir para onde der vontade. Só eu comigo mesmo”, comenta Gerson, que é natural da pequena Barão, a 100 km de Caxias, e desde que saiu da casa dos pais, há 3 anos, já passou por Carlos Barbosa, Gramado, Porto Alegre e Florianópolis. Nunca teve endereço fixo e nunca deu prioridade a isso. Atualmente, trabalha em um hotel, organizando o café da manhã. Como está ganhando um bom salário e tendo as horas livres que precisa para focar em suas músicas, deve permanecer pos mais algum tempo no quarto 26.

Não é o violão de Gerson que tem incomodado José Costa Neto (foto abaixo), de 16 anos, um dos recém-chegados quando fomos à pensão. Para ele, o problema é o frio. José é alagoano e ainda não completou um mês na casa. Aproveitou o primeiro salário de auxiliar de produção que recebeu na metalúrgica Randon para comprar um aquecedor elétrico. Ele não compartilha da boa vontade de Gerson com o cotidiano compartilhado. Sente falta da privacidade de quando morava apenas com os pais, em Maceió. Na primeira noite, diz ter ficado com medo, pois era a primeira vez que ficava sozinho. E, embora já tenha se acostumado, acredita que em pouco tempo irá se mudar para a casa do tio, que foi quem o convidou para tentar a sorte como metalúrgico no Sul.


Aos 57 anos, Natália Francisca, a proprietária, é daquelas senhoras que já viveram de tudo. Casou aos 11 anos, aos 12 teve o primeiro filho. Com o primeiro marido, foram 8 filhos, mais um com o segundo. O terceiro e atual marido, o pedreiro Lúcio da Silva, de 37 anos, ela conheceu como inquilino na pensão. Há 8 anos vivem juntos, o que para ele significou apenas "trocar de quarto", como costuma brincar. Ainda que só tenha estudado até a 2ª série do ensino fundamental, dona Natália se orgulha de exibir diplomas de massoterapeuta, cabelereira, manicure e overloquista (costureira). Há pouco tempo, também entrou para o comércio. Abriu uma pequena loja de roupas na garagem, que ajuda a incrementar a renda. Segundo ela, que resiste em contratar funcionários para ajudar no serviço, a pensão dá muita despesa e pouco lucro. Os gastos com luz e água ultrapassam os mil reais mensais. E ainda há o aluguel e os impostos, que ela se orgulha em dizer que paga, ao contrário de outras casas do gênero, que seriam irregulares, segundo ela.

A pensão Santo Expedito é a segunda incursão de dona Natália neste ramo. Há quase 30 anos, abriu a primeira, que se chamava Catarina – em alusão ao estado onde nasceu, no município de Anita Garibaldi – com o dinheiro que recebeu de fundo de garantia da metalúrgica Eberle, onde trabalhava. Os negócios começaram bem. Logo na segunda semana, ocupou todos os quartos do primeiro andar da casa que alugara – a proprietária vivia no térreo – e precisou emprestar a própria cama para um casal de clientes. Desde então, poensou em desistir apenas uma vez, quando se sentiu cansada e vendeu o que tinha para tentar a vida em Blumenau, onde comprou uma lanchonete. Porém, o negócio não deu certo e ela vendeu tudo novamente – nunca recebeu o valor da venda – para voltar a Caxias apenas um ano depois, alugando a casa onde deu início à pensão atual, na Tronca. E quando achou que iria se recuperar do golpe sofrido em Santa Catarina, um incêndio destruiu boa parte do puxadinho e uma das cozinhas da pensão. Ninguém ficou ferido, mas moradores perderam tudo e ela, que não tinha seguro, precisou pagar toda a reconstrução. "Não passo necessidades, mas pelo que já trabalhei na minha vida, adquiri muito pouco", lamenta Natália, que só não está na pensão quando vai à igreja às segundas-feiras, ou quando vai a São Paulo em excursões de lojistas à procura de roupas baratas.


Apesar dos percalços, dona Natália não se imagina fazendo outra coisa. Gosta de conviver com os moradores, já fez muitos amigos e diz ter tido poucos problemas com inquilinos nestes anos todos. Impõe poucas regras. Uma delas, a mais difícil de fazer cumprir, é quanto às visitas íntimas. “Tá achando que minha casa é motel?”, ela constrange os que não cumprem. A motivação maior para manter o negócio, segundo ela, é ajudar a quem precisa. “Às vezes chega gente aqui com o dinheiro que só dá para pagar o mês, bem trocadinho. Nesse caso, eu ajudo pagando rancho, passagem de ônibus, empresto telefone e até dinheiro, mas só pra quem se presta a procurar emprego”, destaca.

Entre os que recebem a ajuda da dona da pensão também estão alguns idosos deixados pelos filhos, que às vezes visitam com freqüência, às vezes, não. Quem cuida mesmo é dona Natália, que leva até no hospital quando necessário. Só pede para a família assumir a responsabilidade quando considera que estão muito doentes e é preciso procurar médios ou enfermeiros que ajudem a cuidar diariamente. No dia a dia por trás do portão da pensão Santo Expedito, dona Natália ajuda os inquilinos como pode. Sem querer, eles ajudam dona Natália a continuar fazendo o que gosta. Para quem topa a vida em grupo, a troca parece justa.

*fotos 1 e 4 by Paulo Pasa

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

A longa noite dos desempregados


A matéria abaixo saiu há algumas semanas na revista O Caxiense. É sobre a absurda fila enfrentada por quem precisa encaminhar seguro-desemprego em Caxias. A jornada que pra mim começou às 5h, mas que pra quem estava na fila começou bem antes, rendeu uma história legal de contar. E espero que boa também de ler.


Elisabete Gabrielli tem um problema para resolver. Sentada em frente à porta de entrada do SINE para encaminhar o pedido de seguro-desemprego, a moradora de Ana Rech e ex-funcionária do Hospital Geral não sabia que era necessário primeiro retirar o fundo de garantia, na Caixa Econômica Federal, para ter acesso ao benefício. Poderia não ser nada demais, mas são 5:30, o dia sequer nasceu, e ela é a primeira de uma fila que dobra e esquina da Júlio de Castilhos com a Borges de Medeiros, quase chegando na Sinimbu. Para garantir uma ficha, pediu para o namorado guardar um lugar desde as 21:00 do dia anterior. Elisabete, que não revela a idade e aparenta ter 40 anos, só assumiu o posto às 5:00, nem está com sono. Mas agora este imprevisto. Começando a se desesperar, não sabe se fica ou se volta para casa, para tentar a sorte novamente no dia seguinte.

O emissário da má notícia foi o número 2 da fila, o açougueiro Luis Abel, de 30 anos. Desde as 22:00 de plantão, no aguardo por uma das 90 agora tão sonhadas fichas de atendimento, Luis tem uma garrafa térmica, um maço de cigarros e um cobertor. É sua segunda tentativa de encaminhar o pedido. Na primeira, pegou o primeiro ônibus do bairro Planalto, onde mora, e chegou às 6:00. Não teve a menor chance. Por isso decidiu radicalizar, sem dar sopa para o azar: já está há 7 horas sentado – às vezes deitado – e irá completar 8 horas e meia quando o SINE finalmente abrir as portas. Sem querer muita conversa, limita-se a comentar o que ouviu no rádio, em algum momento da manhã de sexta, dia da primeira investida: "por que não aparece nenhum político pedindo voto aqui? Eles sabem que isso é uma vergonha", esbraveja de dentro da jaqueta, antes de tentar engatar mais um cochilo.



O Sistema Nacional de Empregos (SINE) de Caxias vem operando com capacidade abaixo do ideal por falta de funcionários. As 4 vagas que deveriam ser preenchidas com a realização de concurso público ainda não foram ocupadas, e o quadro tende a ser agravado pela perda, a partir do início deste mês, de 5 funcionários terceirizados, que ajudam a manter o atendimento dentro de alguma normalidade. Não só os que perderam o emprego saem prejudicados. A defasagem também afeta os que pecisam fazer carteira profissional e os que procuram vagas no mercado de trabalho. Nesta madrugada de terça (31), a longa fila de desempregados também é formada por seus acompanhantes. Parece ser a situação ideal para provas de amizade e amor incondicional. Como a que está sendo dada por Paulo Panazzolo, desde a 0:00 ao lado da esposa, Vera, recém-demitida de uma imobiliária. Juntos na alegria, na tristeza e até no tédio, os moradores do bairro São Caetano vieram de carro e estão sentados em cadeiras de praia, cada um com o seu cobertor. Preferiram o chimarrão ao café. E como estão no início da fila, aparentemente não terão problemas para conseguir uma senha.



Deixando para trás o otimismo dos primeiros para caminhar um pouco e passar pelos não tão bem rankeados, percebe-se haver mais coisas inusitadas além de um repórter contando pessoas. Há gente que veio de bicicleta desde o bairro São José, amigas deixando a fila para olhar vitrines do outro lado da rua e uma curiosa barraca de plástico improvisada em meio ao mar de cobertores. Dentro dela, dormem as irmãs Marina e Letícia Lovat, de 27 e 17 anos, respectivamente. Como o sono é leve, elas acordam, baixam o plástico transparente que as protege e se mostram receptivas à conversa. Na fila mesmo está Marina, ex-funcionária de uma loja de acessórios para móveis. A irmã é mais uma a demonstrar solidariedade na madrugada. "Ela é muito companheira, nem foi difícil convencê-la a vir comigo", elogia a mais velha. O plástico estava no porta-malas do carro e serviu não apenas para amenizar o frio, mas também defendê-las da chuva leve que caiu em algum momento da noite. Sob a "barraca" mantiveram o café com leite e também os sanduíches que trouxeram em uma bolsa térmica. Ainda que distante dos primeiros lugares, elas também deverão cumprir com o objetivo da noite. Há menos de 50 pessoas na frente delas, sendo que nem todos concorrem a uma ficha.

Razões para se preocupar mesmo enfrentam os recém-chegados, que nem enxergam o início da fila por estarem a quase duas esquinas de distância. É o caso de Rodrigo Souza, de 23 anos, que só conseguiu chegar quase 6:00 porque não tinha ônibus mais cedo. Rodrigo trabalhava em uma metalúrgica e veio do bairro Cidade Nova. Sabe que dificilmente irá conseguir ser atendido, mas irá permanecer. Sua sorte irá depender da quantidade de acompanhantes e interessados em outros serviços que estiverem na sua frente. Mas, se todo mundo ali estiver em busca das mesmas fichas, é bom não marcar compromissos para a madrugada seguinte.

De volta ao início da fila, Elisabete Gabrielli está mais calma. Um homem que ouvia o relato do seu infortúnio – não ter sido avisada sobre a necessidade de retirar o fundo de garantia – apareceu com uma solução simples, mas não cogitada até então. "Ele falou para eu pegar a ficha e tentar trocar com alguém que consiga atendimento para o turno da tarde. Aí tenho a manhã para ir no banco e resolver tudo", comemora. Se tudo der certo, o relacionamento com o namorado, que após a madrugada em claro, agora dorme o sono dos justos, estará salvo. 



quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O que achei de Na Estrada


Na Estrada, adaptação do livro On The Road, do Kerouac, foi o filme que aguardei com maior ansiedade desde Pergunte ao Pó, também adaptação (bem fraca) de um livro que me marcou. Ao contrário de muitos fãs de On The Road, não saí do cinema desapontado. A resenha abaixo foi publicada na edição da semana passada de O Caxiense. A propósito, com o tempo vou postando aqui algumas matérias que faço na revista. 

Salles não é Kerouac. E por que deveria ser?


Adaptar para o cinema um livro que não possui apenas leitores, mas sim seguidores – o rótulo de "bíblia de uma geração" não pode ser mais adequado aqui – é um desafio que tem tudo pra dar errado. E para muitos que já foram ao cinema assistir Na estrada, adaptação do livro On the road, de Jack Kerouac, deu mesmo. A versão dirigida por Walter Salles tem dividido opiniões de espectadores e críticos, provocando discordâncias inevitáveis sempre que uma obra sagrada é maculada.

Publicado em 1957, On the road é bíblia por eternizar a trajetória de uma geração de jovens norte-americanos que, no fim dos anos 40, de mochila nas costas, buscou um caminho às margens da sociedade de consumo, vivendo sem regras e sem rumo, de carona em carona, apenas vivendo, loucos apenas por isso: viver. Essa turma, que nomeou a si mesma geração beat (a hipótese mais consistente do porquê do nome é ser o radical da palavra beatitude – alusão a uma certa iluminação mística oriental contida no pensamento dos beatniks, os integrantes daquele grupo de escritores e poetas), ditou novos caminhos para toda uma geração, e depois outra e nunca mais parou. Sempre vai haver um pouco de Kerouac em cada hippie de qualquer época. As viagens de Sal Paradise (alterego do autor) e Dean Moriarty (inspirado em Neal Cassady, amigo de Kerouac) viraram roteiro de peregrinações de apaixonados pelo livro de todo o mundo e o livro, publicado em 1957, foi decisivo para Bob Dylan e Jim Morrison, por exemplo, se tornasem os artistas contestadores e livres que foram.

Os temas que tornam universal a saga de Sal Paradise – a jornada do herói em busca de um sentido para viver e a dramática busca pelo pai (vivida por Dean, o verdadeiro protagonista) – o que fascina o leitor de On the road há mais de meio século (no Brasil, trata-se do livro mais vendido da coleção pocket da editora L&PM). Na estrada, o filme, é fiel do início ao fim. Tudo o que os fãs do livro (entre os quais me incluo fortemente) idolatram está lá: a estrada, o jazz, as drogas e o sexo, seja ele a dois, a três ou apenas uma dupla masturbação no carro. Mas há também o drama e a melancolia que dá início e fim à geração beat, que talvez por não saber para onde ir, não tenha mesmo ido a lugar algum. Vale citar que Jack Kerouac, o papa dos beats, morreu afundado em depressão profunda, transformado em um reacionário e negando a importância de tudo o que realizou.

Não dá para exigir que o expectador deixe o cinema com a mesma empolgação daqueles que terminaram a última página de On the road, decididos a mudar algo em suas vidas. São experiências totalmente diferentes, a começar pelo tempo: comparar duas horas numa sala em frente a uma tela com alguns dias e noites mergulhados em mais de 300 páginas parece inadequado. Finalmente, não sei que impacto pode ter o filme para quem não teve contato com a obra original. Talvez seja chato, maçante e sem sentido (o roteiro poderia contextualizar melhor o cenário em que se dão as loucuras daquela turma). Para este leigo em cinema, mas fã dos beats, valeu a pena. Se você já leu o livro, corra para o cinema. Se não leu, ainda é melhor correr para a livraria.  

domingo, 5 de agosto de 2012

100 atualizadas antes de dormir


Em um futuro não tão distante, tenho certeza que os amigos me ouvirão depositar a culpa de meus fracassos no botão F5, este que me faz passar o dia atualizando nada na tela do computador.

Maldito vício adquirido e agravado com o tempo, esse de ter que atualizar centenas de vezes por dia o Twitter, o e-mail, o Facebook, o site de notícias, o site de esportes, como se estivesse à espera de algo muito importante e que nunca chega.

Não é nada científico, mas creio que nove em cada 10 atualizações de página não resultam em absolutamente nada. É tão impressionante que até de madrugada, quando não tem mais ninguém pra escrever nada site nenhum, nem nas redes sociais, ainda assim eu não paro de atualizar, atualizar, atualizar.

Minha produtividade se torna inversamente proporcional à quantidade de atualizações de páginas, que na maioria das vezes atualizam a si mesmas. Penso em como deveria ser fácil ser jornalista quando se tinha à frente tão somente uma inerte folha de papel na máquina de escrever.

O vício de dar F5 deve ter efeitos devastadores a longo prazo. Quase posso sentir meu cérebro pedindo por atualizações enquanto tento dormir. É verdade que ainda não cheguei a interromper o sono para ligar o computador e dar uma última checada no mundo, mas sinto que esse dia não está longe.

A necessidade de ter alguém me falando algo no mundo virtual contradiz minha própria personalidade do lado de cá – de cá? –, em que nem gosto tanto assim de ser mencionado, notificado, marcado ou convidado para muita coisa. Mas como convencer meu sistema nervoso disso à essa altura dos acontecimentos, quando já sou um caso perdido, um cérebro disperso entre janelas e abas aguardando a próxima atualização manual?

Como não existe ainda um adesivo que a gente grude na pele para controlar a vontade de dar F5, prevejo anos de sofrimento para o atualizante compulsivo. Aos inventores se soluções mágicas para a humanidade, fica a dica e o apelo. Aceito até ser cobaia. 

sábado, 4 de agosto de 2012

Retomando


Amigos, nunca achei que fosse ficar tanto tempo sem escrever. 

É verdade que não sou um blogueiro disciplinado, mas fato é que se passaram quatro meses sem uma única palavra postada aqui - o que nem por um dia sequer deixou de me incomodar nesse período. Passei parte desse tempo sem escrever nada de fato e cheguei a achar que o assunto tivesse acabado, o que me deprimiu um pouco. Mas novas ideias surgiram e com elas a vontade de me comunicar de novo. Por isso vou tentar mais uma vez.  

Espero não ter perdido meu pequeno, porém apreciável público de leitores, e também que eu consiga manter uma rotina de atualizações freqüentes - e legais.

Desculpem as férias prolongadas, mas o blog finalmente está de volta. Ponto para a vontade, que finalmente equilibra o jogo com a preguiça.  

esse post é só para contar isso mesmo. 

terça-feira, 27 de março de 2012

Dois belos parágrafos de Kurt Vonnegut

No livro de ensaios e memórias "Um Homem Sem Pátria", o escritor e grande humanista Kurt Vonnegut, então com 83 anos (morreu aos 85, em 2007), encerra seu último capítulo - e até onde eu sei sua extensa carreira literária - com a pérola que reproduzo abaixo para os amigos leitores.

Acho que as palavras do Vonnegut exprimem - com muito mais beleza e clareza, naturalmente - muito do que eu sempre tento dizer e defender em meus textos.

"Mas eu tinha um tio bom, meu falecido tio Alex. Era muito lido e sábio. E a principal queixa que fazia dos outros seres humanos era que raramente notavam quando eram felizes. Por isso quando tomávamos limonada debaixo da macieira no verão, digamos, e conversávamos ociosamente sobre isto e aquilo, quase zunindo como abelhas, tio Alex subitamente interrompia a tagarelice agradável para exclamar: 'Se isto não é bacana, então não sei o que é.'

Por isso eu faço o mesmo agora, assim como meus filhos e netos. E insisto com vocês para por favor notarem quando estiverem felizes, e exclamarem, ou murmurarem ou pensarem a certa altura: "Se isto não é bacana, então não sei o que é."

quarta-feira, 21 de março de 2012

O medo da morte

Afinal, o que é que tanto nos incomoda, preocupa ou amedronta diante da inegável certeza de que um dia encararemos a cara feia da morte?

São os planos que deixaremos inacabados? É não poder mais fazer o que gostamos ou nunca mais estar com aqueles que amamos por toda a vida? É o medo do que vem a seguir, ou de que nada a venha a seguir?

Deixar de existir sempre me pareceu o mais tão trágico aspecto da morte. Tão trágico quanto curioso, tenho que admitir. O mundo segue, mas você não. É inconcebível. Viramos mera lembrança de quem nos conheceu, até que eles venham a morrer também e aí seremos parte de um passado sem testemunhas, até que nossa existência possa servir no máximo para algum descendente conquistar uma dupla cidadania no futuro.

Desconsiderando toda a carga filosófica do tema, o simples ato físico de morrer, por si só, já me incomoda o suficiente. Parar de respirar. Os cinco sentidos nos abandonando enquanto a mente nos oferece algum devaneio que nos tire a consciência do fim, caso a morte não nos alcance de forma abrupta.

Temos certeza da morte, mas não sabemos quando iremos morrer e por isso planejamos coisas. Coisas que nos farão detestar nossa morte tanto quanto a dos nossos familiares, amigos e ídolos. E jamais nos acostumaremos com a ideia de ter nossas empreitadas interrompidas.

O que vem primeiro: o medo ou o ódio da morte? Com qual destes sentimentos é menos doloroso conviver?

Assim como este texto, tudo que a morte nos deixa são perguntas e mais perguntas.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Em paz


Nada como poder recorrer ao infinito calendário de efemérides sempre que os assuntos começam a rarear na mente do blogueiro. Se há uma semana fui salvo pelo Dia da Mulher, hoje o Dia da Poesia vem salvar este blog do inferno da desatualização.

Não sou especialista em poesia. Não sou especialista em nada, é verdade, mas em poesia passo ainda mais longe. Mas sei recitar por aí uma meia duzia de poemas que gosto bastante, principalmente do Augusto dos Anjos e do Manoel de Barros, meus dois poetas preferidos.

Costumo demorar uma semana para decorar um poema a ponto de recitá-lo com segurança. O último que aprendi foi até aqui o mais difícil (creio que seja dos mais fáceis para quem é do ramo), mas também é dos mais belos que já conheci. Chama-se Em paz, e é de autoria do poeta mexicano Amado Nervo (1870-1919). Ei-lo:

Já bem perto do ocaso, eu te bendigo, ó Vida,

porque nunca me deste esperança mentida,

nem trabalhos injustos, nem pena imerecida.


Porque vejo, ao final de tão rude jornada,

que a minha sorte foi por mim mesmo traçada;

que, se extraí os doces méis ou o fel das cousas,

foi porque as adocei ou as fiz amargosas:

quando eu plantei roseiras, eu colhi sempre rosas.


Decerto, aos meus ardores, vai suceder o inverno:

mas tu não me disseste que maio fosse eterno!

Longas achei, confesso, minhas noites de penas;

mas não me prometeste noites boas, apenas,

e em troca tive algumas santamente serenas…


Fui amado, afagou-me o Sol. Para que mais?

Vida, nada me deves. Vida, estamos em paz!