Há alguns meses, aproveitando a repercussão do filme Na estrada (adaptação do clássico On the road, do Jack kerouac), sugeri na reunião de pauta da revista uma matéria sobre mochileiros. Encontrei gente bem bacana, com histórias e modos de viajar bem diferentes, mas que têm em comum uma certe aversão ao turismo convencional e um amor pelo improviso. Abaixo, a reportagem.
Eles
amam viajar, mas não reservam hotel e nem acumulam milhas aéreas.
Não fazem check-in e dispensam qualquer serviço de bordo. Se
precisar, dormem na rua. Na hora de pegar a estrada, os sapatos do
dia a dia dão lugar a botas com a sola gasta, duras de barro. Para
os adeptos do mochilão, a “indiada” – alguém já disse por aí
– é boa porque é ruim. Seria melhor se fosse pior. Afinal,
turismo convencional é para os fracos.
O
mochilão é mais do que uma forma alternativa de viajar pelo mundo,
privilegiando gastos menores. É um estilo de vida, filosofia em que
a imersão em culturas diferentes se dá não pela visita ao museu da
moda ou pelos souvenires comprados na loja do aeroporto, mas sim pelo
café na casa de um desconhecido, pela carona ou pelo ônibus lotado.
Nos últimos anos, a cultura mochileira virou pop. São dezenas de
blogs, livros, filmes e programas de televisão, dedicados a contar
histórias de viagens, que tornam esse estilo cada vez mais popular
(e menos estranho para os pais superprotetores). Em Caxias do Sul,
encontramos pessoas que já nasceram com a mochila pronta, e outras
que em algum momento da vida trocaram o turismo das agências pela
aventura improvisada, substituindo o táxi pelos próprios pés.
Conversando com todos eles, em comum percebe-se a ânsia por se
tornar mais livre, de precisar cada vez menos para viver. E o
inevitável desejo que permeia qualquer saída além do portão:
conhecer pessoas.
Aos
28 anos, a produtora cultural Mona Carvalho é uma dessas pessoas
apaixonadas por improvisar a vida de estrada em estrada. Morou na
Espanha, na Itália e na Colômbia, sempre procurando fugir do
convencional em cada lugar. Já pediu esmola para voltar para casa
após um show de Marylin Manson, já teve que deixar uma casa de
família por sofrer assédio de velho tarado, já usou as próprias
malas como cama e as roupas como cobertor.
Entre
as viagens preferidas, o trajeto até a cidade de Bucaramanga, na
Colômbia, onde ganhou uma bolsa de estudos para cursar Manutenção
de Bens Culturais, em 2007. O trajeto, feito de ônibus e caronas
“nada memoráveis”, segundo ela, durou duas semanas e meia,
passando por Paraguai, Bolívia, Peru e Equador, até chegar à
pátria de Gabriel García Márquez. No caminho, entre uma escapada e
outra do roteiro previsto, enfrentou desde deslizamento de terra até
travessia de rio pendurada em uma corda, além de longas caminhadas
no meio do nada atrás de carona. Para quem chega da Europa, a
realidade latino-americana pode ser traumática. A viagem que duraria
um ano, durou 3 meses, e foi derrotada por uma crise de identidade
que trouxe Mona de volta para Caxias, para concluir o curso de
Educação Artística, na UCS. Ainda assim, valeu a pena. “Botar
uma mochila nas costas e viajar sem planejar nada, pelo menos uma vez
na vida, é obrigação. Todo mundo deveria fazer isso pelo menos uma
vez na vida”. Mona não cansa de recomendar experiências como as
que acumulou. Segundo ela, a transformação que a vida longe de casa
e sem regras provoca, é o que mais compensa. “Quando tu conhece
uma cultura diferente e está aberto a isso, tu recomeça do zero.
Deixa pra trás muito preconceito, fica menos ‘enjoada'. E percebe
que não precisa de nada do que tem em casa para viver. É muito
bom”.
Atualmente,
Mona (foto acima) vive na casa dos pais. Recentemente, pediu demissão do emprego,
na Secretaria Municipal da Cultura, para se dedicar aos projetos
culturais que toca de forma autônoma, aproveitando o que considera
um cenário favorável da cidade nesta área. Mas já sente a pressão
por parte dos amigos. “Eles dizem ‘pô, tu está louca, como foi
deixar o cargo bacana que tu tinha...’, mas eu não preciso disso.
Só um pouco de grana – até para viajar. Mas ter amigos, música,
natureza, estar fazendo tudo isso...é o que me basta”.
A
satisfação que Mona sente viajando de ônibus, trem ou de
carona, o cinegrafista da UCS TV Dirceu Borba experimenta caminhando.
Dirceu é praticante de trekking, a famosa “trilha”, e está
sempre na estrada. Entre os pertences mais queridos que mantém no
apartamento que divide com a esposa, está uma bota que transformou
em troféu, com uma placa identificando a quilometragem percorrida
pelo calçado: 1000 km.
Dirceu
é natural de Concórdia, em Santa Catarina, e desembarcou no Rio
Grande do Sul de mochila nas costas, sem endereço. Em Porto Alegre,
onde trabalhava na TV Guaíba, dormia na rodoviária, sem que os
patrões soubessem. Em Caxias, afirma ter passado muitas noites no
Parque dos Macaquinhos. Na estrada desde os 19 anos, quando saiu do
Exército, a viagem que mais o marcou ocorreu em 2004, quando fez a
pé a trilha dos incas rumo a Machu Picchu, no Peru. Mas nem são as
belas paisagens da cidade perdida que fazem o catarinense querer
voltar em breve: as melhores lembranças são justamente do pior
trecho da viagem, as 22 horas passadas no tenebroso “trem da
morte”, que liga Quijarro a Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia,
deixaram muito mais saudades. Construído na década de 50, o trem
ganhou esse nome devido a um surto de malária que vitimou muitos
operários que trabalhavam na construção. Meio século depois, o
que assusta os passageiros são os solavancos e até algumas
descarriladas no caminho, além da superlotação e as invasões de
nativos a cada parada, que obrigou Dirceu a dormir com as mochilas
amarradas junto ao corpo, para evitar furtos. Mas são experiências
como essa que proporcionam as melhores lembranças e as melhores
histórias para contar. Também são uma escola, que ensina a tolerar
as diferenças e exercitar o autoconhecimento. “Viajando
sozinho, tu passa a dar outro valor para as coisas que no cotidiano
passam batidas. A comida, por exemplo. A gente está sempre
reclamando de fome mesmo sabendo que meio-dia vai almoçar, que à
noite vai jantar. Longe de casa, em uma aventura, tu come coisas que
achou que nunca teria coragem de comer”, observa o aventureiro.
Aos
47 anos, Dirceu (foto acima) não pensa em sossegar. Está sempre atrás de uma
nova trilha, especialmente no Rio Grande do Sul. “Não sou uma
pessoa muito urbana. Me sinto enlatado na cidade”, metaforiza. Ao
contrário do que se poderia esperar, Dirceu não é avesso à
tecnologia (tanto que trabalha com ela). Apenas prefere o equilíbrio.
"Falta na sociedade saber estar livre de tanta parafernália,
aproveitar a saúde, se movimentar. Um dia as coisas vão precisar
cair do céu", observa.
A
vida a pé,
carregando o mínimo possível em uma mochila, parecia improvável
para Elias e Neiva Mussatto. Casados há 40 anos, o bancário e a
assistente social passavam por uma fase de conflitos internos,
confrontados com a hipótese da aposentadoria e o que viria depois.
Para entender melhor o momento que atravessavam, buscaram respostas
em um dos mais famosos destinos dos viajantes: o místico caminho de
Santiago de Compostela. Durante 30 dias, percorreram a pé os mais de
800 km do caminho francês até a cidade espanhola, uma das 9 rotas
para se chegar à catedral de Santiago.
Despidos
de qualquer luxo, Elias e Neiva (foto abaixo), que já haviam rodado o mundo como
turistas, caminhavam de 25 a 30 quilômetros por dia, dormiam em
albergues que chegavam a ter 100 camas em um mesmo espaço e comiam
somente o necessário, que se tornava cada vez menos durante o
caminho. As tralhas medicinais levadas para eventuais bolhas nos pés
e outras enfermidades, foram deixadas pelo caminho logo nos primeiros
dias. Estavam bem preparados (como treino, passaram por um ano de
academia e pequenas caminhadas pelo interior do estado). Ao fim de
cada dia, calculavam o quanto haviam gasto e se surpreendiam com a
economia deste modo de viajar. Os amigos que fizeram pelo caminho
aguardam ansiosamente pela próxima viagem dos dois, que deve ser
pelo caminho português até Santiago.
"A
sensação de chegar a pé em uma cidade pela primeira vez é
incrível. Você se sente feliz e totalmente livre, tendo apenas a
mochila nas costas", comenta Neiva, cuja veia aventureira
surpreendeu os 4 filhos. “Esses meus filhos são muito machistas.
Quando chegamos, diziam: 'o pai a gente sabia que ia conseguir, mas
tu nos surpreendeu!'. E até hoje eles acham que o Elias é que
carregava minha mochila”, brinca a senhora, que demorou a conseguir
usar sapato de salto alto novamente após acostumar com o tênis.
Os
melhores momentos da aventura estão registrados em um vídeo bem
editado por Elias, com direito à trilha sonora de Raul Seixas e
Roberto Carlos. Ele exibe a obra com orgulho, na sala da casa que
divide com Neiva. Lembranças da viagem preferida do casal também
estão na parede da sala, onde um mapa em alto relevo representa a
rota que marcou um novo período de suas vidas. Depois de Santiago de
Compostela, o casal embarcou em uma nova peregrinação, fazendo o
caminho de São Francisco, na Itália. Mas esse tinha “só” 350
km. Elias, de 57 anos, e Neiva, de 55, se aposentaram no ano passado.
Em alguma estrada espanhola, concluíram que o ciclo de trabalho já
havia sido cumprido. Era hora de dar início a uma nova fase, talvez
de trabalho voluntário. Ainda aguardam pela
inspiração que lhes aponte qual o próximo caminho na vida. Mas só
mesmo para o ano que vem. Por enquanto, os novos mochileiros de
Caxias estão de férias, deixando acumular na caixa de entrada de
e-mail os convites para novos passeios. Mas ainda há muita estrada a
percorrer antes de pendurar as botas.
fotos: acervo pessoal
lindo... sempre digo que viajar é a melhor forma de deixar de olhar o próprio umbigo e também de promover a paz no mundo...
ResponderExcluirobrigado pela leitura, Shirley!
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