No início de outubro, fui pautado para fazer uma matéria sobre a reconstrução da Vila Sapo, em Caxias, que foi afetada por um incêndio 10 dias antes. 20 casas ficaram totalmente destruídas e três jovens irmãos morreram. É a história mais triste que já escrevi.
Dizer
que é possível imaginar a dor que a pessoa está sentindo é uma
das formas mais comuns de se tentar confortar alguém. Mas a dor de
Maria Cardoso, 41 anos, é inimaginável. E qualquer forma de tentar
consolá-la enquanto admira as fotos dos filhos Maikiel, de 17 anos,
Mateus, 12 e Marieli, 3, mortos no incêndio que levou também a casa
de Maria e outras 19 moradias na Vila Sapo, no bairro Serrano, na
última madrugada de agosto, parece mera tentativa de parecer
solidário. Para a mãe que engole o choro diante de cada jovem ou
criança que vê passar na rua, resta pela frente uma vida desde já
incompleta. E que dificilmente se tornará maior do que o vazio que
sente. As
fotos que Maria mantém guardadas no envelope de um estúdio
fotográfico de Caxias do Sul são as únicas lembranças materiais
que conseguiu reunir dos filhos, já que tudo foi consumido pelas
chamas. Impressas em papel ofício recentemente, as imagens foram
tiradas de um cartaz feito pelos colegas de escola dos meninos, para
homenageá-los no velório. Além delas, uma montagem que reúne lado
a lado os retratos dos três, com o nome de cada um e uma mensagem
religiosa, foi presente de uma amiga. Desde sábado, está emoldurada
em um porta-retratos que repousa no pequeno altar que Maria ergueu na
sala da casa onde mora provisoriamente, no bairro Pioneiro.
O
trágico incêndio na Vila Sapo começou
por
volta das 23:30 da sexta-feira, 31 de agosto,
na casa em
que
Maria vivia com
os filhos, e logo se espalhou pela vizinhança. Embora a causa não
seja confirmada, é provável que tenha sido provocado por uma vela
esquecida acesa pelos meninos, que tomavam conta da casa. Naquele
mesmo dia, no fim da tarde, a energia elétrica foi cortada pela Rio
Grande Energia (RGE), por conta de um curto-circuito. Sem luz, os
jovens devem ter recorrido às velas, pois a menina nunca dormia no
escuro. A mãe, que estava trabalhando, só chegou ao local cerca de
1 hora depois, quando os bombeiros já haviam controlado o fogo, mas
ainda não confirmavam se havia vítimas ou não. Relembrando
daquela noite, Maria fala
sem gaguejar ou dar sinais de fraqueza diante de memórias tão
tristes. Conta que estava trabalhando normalmente, quando seu chefe
avisou que as casas de 2 colegas haviam incendiado e perguntou se ela
os conhecia. Ao saber que se tratava de seus vizinhos, logo imaginou
que a sua também estivesse envolvida, porque as moradias eram todas
muito próximas. Foi levada até a Vila Sapo por um segurança da
empresa, mas quando chegou já era tarde demais. O fogo havia
consumido tudo. Ao sentir a falta dos filhos, que nunca saíam de
casa à noite e não estavam entre os vizinhos, que assistiam
impotentes ao trabalho dos bombeiros, Maria pressentiu o pior. Sem
conseguir permancer no local, foi levada até a casa de uma tia para
se acalmar. E quando voltou, por volta das 4:00, teve a confirmação
do que já esperava intimamente. Seus 3 filhos, cujos corpos foram
encontrados abraçados, estavam mortos.
Foi
na casa onde vive há poucos dias,
enquanto espera por um dos apartamentos prometidos pela prefeitura
aos moradores que perderam suas casas, que Maria Cardoso aceitou
receber a reportagem de O CAXIENSE na chuvosa tarde de terça-feira
(18), após uma breve entrevista por telefone na noite anterior. Sem
querer, a reportagem interrompeu uma das raras horas de sono que ela
conseguiu ter desde o dia em que viu seus filhos pela última vez,
após se despedir para o que esperava ser uma jornada normal de
trabalho na empresa Agrale, onde trabalha, há dois anos, no turno da
noite. Tímida e de poucas palavras, Maria conta que sempre foi de
chorar pouco e não gosta de expressar as emoções que sente. Parece
tratar do assunto com mais resignação do que desespero. Ao
responder sobre como tem sido seus últimos dias, conta que o
isolamento tem sido a melhor forma de tentar absorver a dor, e por
isso pede, repetidas vezes, para que não seja publicado seu
endereço. Está cansada de ouvir as pessoas e suas palavras de
conforto, por mais sinceras que sejam. “Todo mundo insiste me fazer
lembrar do que aconteceu. Até gente que eu nem lembrava vinha me
perguntar como eu estava. Isso é muito ruim, é como ter uma ferida
e ouvir todo mundo dizendo: 'olha, tem que cuidar isso aí'”,
comenta. Ainda sem se sentir preparada para recomeçar a vida, Maria,
que é separada e não cogita constituir nova família, ganhou férias
do trabalho, e agora passa os dias tentando absorver a dor, tendo
pouco contato com as pessoas. Mas sabe que em algum momento será
necessário seguir em frente com a parte que restou da vida que
tinha. "A morte dos meus filhos mudou tudo, pois minha vida era
só em torno deles. Quando chegava em casa, de madrugada, tinha que
amamentar e colocar a pequena para dormir. Não tem como preencher
esse vazio que fica. Uma parte da minha vida se foi, agora preciso
aprender a continuar sozinha com o que sobrou para viver",
afirma. À Vila Sapo, Maria também não pensa em voltar. Nas poucas
vezes em que visitou o local após o incêndio, diz ter sentido algo
como "uma sensação escura e sinistra", que prefere
evitar. No chão onde ficava sua casa, improvisou uma pequena capela
de tijolos, contendo apenas uma rosa.
Na
humilde Vila Sapo, a área atingida pelo incêndio ainda
guarda as marcas deixadas pelo fogo nas vigas de madeira que sobraram
da maioria das casas. Pelo chão, alguns poucos pertences que as
famílias preferiram tentar não recuperar, como peças de roupa,
cadernos e brinquedos. É provável que nada venha a ser construído
tão cedo pela prefeitura, que aguarda um levantamento técnico sobre
as condições da área. Moradores que aguardam pelas habitações
prometidas, como a faxineira Zeli Toledo, de 43 anos, começam a se
mudar das casas de amigos e parentes para casas alugadas em outros
bairros da cidade. Além do teto e dos móveis, cada família lamenta
a perda daquilo que representa maiores recordações afetivas. No
caso de Zeli, por exemplo, o vestido do batizado da filha é perda
bem maior do que o dinheiro que estava na carteira. E mesmo quem
escapou de perder a casa, convive agora com a lembrança de cenas que
jamais gostariam de ter visto, e com a perda de amigos e bons
vizinhos, como todos parecem lembrar dos 3 filhos de Maria. "Ele
(Maikiel, o mais velho) era como um irmão pra mim. A gente tava
sempre brincando, 'se arriando' em tudo. Vai deixar muita saudade",
lembra o estudante Jefferson de Góis, de 16 anos, que mora do outro
lado da rua onde ocorreu o incêndio.
Enquanto
amigos, vizinhos e familiares
não encontram respostas para a tragédia, Maria Cardoso tem na
crença em Deus uma resposta que a conforta. Antes de se despedir da
reportagem, fez questão de compartilhar o quanto tem buscado, na
religião, a força para atravessar o momento difícil. Conta que,
por ter ensinado aos filhos o amor a Deus, acredita que eles estejam
juntos no céu, olhando por ela. "Tenho certeza que ensinei o
melhor pra eles. E eles sabiam que Deus estaria com eles até na hora
da morte".
*Fotos: Paulo Pasa
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