quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Do baú

Escrevi há alguns dias aqui sobre minhas primeiras crônicas. Sobre textos que, se não são nenhum primor estético, têm lá sua importância por terem sido o início do eterno treinamento da escrita.

Pois bem. Revirando no baú virtual que só meus filhos e netos terão acesso um dia, procurando pela primeira crônica - que não encontrei (mas minha mãe deve ter) -, achei este texto, escrito e publicado em março de 2006, no primeiro blog que tive.

Por ter sido um de meus primeiros textos com alguma pretensão de cronista - e por trazer como personagens alguns grandes amigos - terei por ele sempre um carinho especial. Ei-lo abaixo (sem edição ou correções):


Retrato da noite de cinco desempregados, sentados à mesa de um bar
Personagens: Andrei, Juliano, Pooh, Renan e Rafael. Local: Tertúlia Bar.

O combinado era cada um comprar duas latinhas no Tertúlia e voltar pra casa do Rafael. Estávamos em nove. Mas por hábito, nos sentamos e pedimos a primeira cerveja. Por mera ocasião da coincidência ou do infortúnio, os cinco desempregados ocuparam os cinco lugares da mesma mesa. Já estávamos com a conta estourada pelos excessos carnaval, logo, não poderíamos nos exceder. Mesmo assim, vieram ainda a segunda, terceira, quarta, quinta, sexta, até que a matemática financeira começou a pesar.

A partir de então, cada nova garrafa que chegava à mesa era vista e tratada como uma nova conquista. Uma amarga vitória do impulso contra a lógica, da emoção contra a razão, nos infaustos campos de batalha da consciência. Os amigos da outra mesa, bem empregados, já pouco bebiam, talvez por não haver a necessidade do sacrifício, da doação de si para os amigos, da prova de amizade incondicional.

Na nossa mesa, as coisas iam bem. A partir da décima Polar, as seguintes já traziam consigo as contas do pessoal. Não a soma das cervejas da noite, e sim, as do mês. Contas frias e calculistas, exageradas na impessoalidade dos algarismos e da tinta azul das máquinas registradoras. Cada novo papelzinho que chegava era passado à frente dos olhos de todos como um símbolo de contemplação que relembraria nossos fins-de-semana e feriado de carnaval.

A estas alturas já aparecera ao meu lado o Eduardo, amigo bem empregado, com a função de responder por nossos atos e dar à nossa mesa – a dos devedores - um pingo de credibilidade junto aos garçons. Uma ou duas rodadas depois, o bar fechou e fomos para o lago curtir o amanhecer de mais uma noite da juventude.

Já decidi, e devo ainda propor aos meus colegas de mesa. Mesmo depois de pagas, nossas contas do Tertúlia serão carinhosamente guardadas, tal como cartas, bilhetes, souvenires, qualquer coisa destas que nos remetem aos melhores dias da nossa vida.

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É uma pena esquecermos boa parte do conteúdo despejado da boca pra fora numa noite dessas. Perdem-se as mais curiosas pérolas das relações interpessoais. Mas lembro de comentar com o Pooh sobre os clichês que invariavelmente usamos quando um encontro entre amigos chega ao fim. Bordões clássicos como: “Amanhã à tarde vamos tomar uma ceva. Cada um da cinco, a gente compra uma caixa e vai pro lago, blá, blá, blá...” Ou, melhor ainda: “Amanhã vamos fazer um som na tua casa”. Essa sempre rola quando há dois ou mais músicos na mesa. Incrível e infalível.

Refletindo a respeito destes e outros piores, concluímos ser isso uma maneira de não querer aceitar que a noite chegou ao fim, e que no dia seguinte nossa vida cotidiana voltará à eterna repetição dos dias. Para isso criamos, na intenção de dar à noite algum sentido a mais, uma pendência qualquer para o dia seguinte, mesmo sabendo que esta não se consumará e que as idéias noturnas terão sido em vão.

Um comentário:

  1. Mudam os personagens, mudam os lugares, mudam as situações, mudam os tempos... Mas as promessas de fim de noite são sempre as mesmas.
    "Vamos fazer tal coisa amanhã", "Me liga pra combinarmos"...

    Legal. :) Essa crônica aí me fez lembrar de muitas noites já vividas, repletas de idéias e planos não cumpridos. hehehe

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